A confluência entre a poetisa americana Elizabeth Bishop (1911-79) e a escritora brasileira Marta Góes poderia ser apenas um acidente geográfico. Como por exemplo: as magníficas formações serranas de Petrópolis, que ambas viram. Magníficas nas luzes das primaveras dos anos 60. Eram vizinhas, mas não se conheciam pessoalmente. A menina Marta sabia de Elizabeth, como alguém que se dá conta de um astro distante, porém visível a olho nu: a estrela-d’alva, digamos. As duas mulheres nasceram nos Estados Unidos, a primeira em Massachusetts, e a segunda em Michigan – outro acidente, corrigido com a volta dos pais dela ao Brasil. Que tenham ido parar na mesma cidade brasileira, tem de ser mais do que coincidência. Os montanheses são místicos por natureza: sabem que há muito mais entre a terra e as estrelas. Não fosse assim, como explicar que um texto de Marta fosse resgatar a obra de Elizabeth no vigésimo aniversário da Powerhouse (temporada de verão de teatro) da Faculdade de Vassar, em Nova York, onde a poetisa estudou? Como Elizabeth em seus poemas sobre o Brasil, explicando os sentimentos e cruezas do País para seus conterrâneos do Norte, Marta escreveu, em 2001, a peça Um porto para Elibabeth Bishop, traduzida para o inglês por Júlia Beirão e Mário Góes como A safe harbor for Elizabeth Bishop, para relatar os mesmos substantivos definidores desta americana para seus patrícios. Outra convergência: encontrou na premiada atriz Amy Irving um veículo, quase mediúnico, para apresentar o resultado no palco. Amy, sabe-se, é outra expatriada – ela é casada com o diretor de cinema Bruno Barreto – e entende ao pé da letra aquilo que Elizabeth viveu abaixo do Equador. As três mulheres têm a solidez das formações rochosas petropolitanas. O resultado foi temporada de casa cheia – entre os dias 23 de junho e 4 de julho – e platéias aplaudindo de pé este espetáculo de encontro cardeal.

A história de Elizabeth no Brasil não é fácil de ser contada. Americana que
ruma à Patagônia, desembarca em Santos e vai ao Rio de Janeiro visitar
gente conhecida. Come caju, que ela definiu como “combinação indecente de
fruta com castanha”, e sofre terrível reação alérgica. Tinha, naquele 1951, 40 anos
de idade. Era filha única órfã, sofria de asma e depressão. Alcoólatra e lésbica, a poetisa tinha carências superlativas que foram, pela primeira vez na vida, aninhadas e tratadas pelos nativos. Em especial por Lota Macedo Soares, por quem se apaixonou e com quem viveu até 1974. Retratada assim, a personagem parece saltar do imaginário de Jorge Amado. Vencedora do Prêmio Pulitzer de 1956, Elizabeth, porém, é mais sutil e Marta foi buscar em sua sofisticação as tintas para pintá-la corretamente. Mostra uma trajetória que vai da fragilidade extrema à redenção sofrida, na qual o país ajuda a consolidar a pessoa e sua obra. A teatróloga escolheu o monólogo para recontar a poetisa. Em palcos nacionais deu certo, quando em 2001 foi dirigida pela competência de José Possi Neto e interpretada de forma brilhante pela atriz Regina Braga.

Mas nos Estados Unidos, terra do diálogo, um monólogo nem sempre recebe ouvidos dispostos. “No Brasil, as pessoas se reconheciam na visão que Elizabeth tinha dos modos nacionais.
Era preciso encontrar o mesmo reconhecimento entre os americanos”, diz Marta. Houve, portanto, uma adaptação, sem que se quebrasse um átomo da integridade do texto original. “O cuidado com a produção foi requintado. No Brasil, recebia telefonemas dos Estados Unidos perguntando, por exemplo, como era o aparelho telefônico em Petrópolis na década de 50. Tudo o que citei na peça está no palco”, diz Marta. Para se ter uma idéia do desvelo, pegue-se a peruca que Amy usa em cena: tem valor nominal de US$ 6 mil. Mas o peruqueiro a deu de presente à atriz pela admiração que tem por seu trabalho.

Qualidade – A Faculdade de Vassar é o maior depositário da obra e do legado de Elizabeth. Mas o fato de dividirem despesas e crédito com o New York Stage and Film Union na produção indica mais do que zelo conservacionista. O primeiro texto brasileiro apresentado no festival de teatro da escola, desde a fundação em 1861, havia de ter a qualidade exibida pela própria instituição, uma das mais conceituadas do país. “Quatro pessoas haviam me dado esta peça para ler. E ela é um presente que o Brasil me deu”, diz Amy. O diretor Richard Jay-Alexander dá o lado, digamos, americano do reconhecimento: “Eu não sabia nada sobre Elizabeth Bishop. Quando Amy me apresentou o texto, pirei e disse: ‘Você tem de me dar a direção desta peça.’” Jay-Alexander é eclético: dirigiu espetáculos na Broadway e fora dela. Seus créditos incluem sucessos como Les Miserables, The Phanton of the Opera e Miss Saigon. Fez espetáculos com Barbra Streisand, Beth Midler, Johnny Mathis e Ricky Martin. E também é ator. Essa exuberância foi condição fundamental para a execução do espetáculo que se viu em Vassar. Produtores de Nova York já disputam a peça para encaminhar aos palcos de Manhattan.

O sucesso da temporada experimental foi tamanho que Miss Irving foi aplaudida de pé na terça-feira 29. Entre os entusiasmados estavam um velhinho penetra, que implorava para o marido da autora que não o colocassem para fora, e o primeiro marido da atriz, o diretor Steven Spielberg, acompanhado por sua segunda esposa. O cineasta foi ao camarim elogiar o trabalho e manifestar seu espanto. “Parece que há várias pessoas em cena. A gente parece que vê Lota no palco onde só está você”, disse a Amy. Um dos truques para isso é o palco giratório, inexistente na primeira montagem, que faz o rodízio de cenários. Uma idéia de Jay-Alexander, que como um D.J. teatral fez um mix de ambientes e épocas, sem que ocorressem interrupções no ritmo do texto. No poderoso arsenal dramático de Amy Irving, Elizabeth Bishop se materializa. Contando-se a história de vida tão oprimida, seria de esperar que o público saísse do teatro acachapado pela depressão. Ocorre exatamente o contrário. A safe harbor for Elizabeth Bishop devolve aos gramados de Vassar platéias mais sábias e esperançosas.