Através dos versos de Cazuza, numa canção assinada em parceria com Roberto Frejat, a inimitável Cássia Eller pedia a Deus um pouco de malandragem. De nada adiantou. Nem a experiência adquirida no decorrer dos 11 anos de carreira e 39 de vida, recém-completados em dezembro, livrou a cantora carioca de um triste fim. A probabilidade é que tenha sido por overdose. Mas, até sair o laudo final, nem as declarações contrárias da família nem o boletim médico puderam até agora esclarecer a verdadeira causa da morte. São histórias desencontradas, que ainda não se encaixam, mas deixam no ar uma constatação cruel: parece uma sina dos escolhidos pela diferença, aqueles que ateiam fogo nas normas estabelecidas, um dia atear fogo na própria vida.

Cássia estava feliz com a sucessão de 100 shows em sete meses de 2001, sempre com casas lotadas de norte a sul do País. Terminaria o ano fazendo uma apresentação no dia 31, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. Os espetáculos vinham sendo rebocados pelo sucesso de seu oitavo álbum, o ótimo Cássia Eller acústico MTV, lançado no ano passado, que até o momento vendeu 400 mil cópias – o equivalente a quase dois discos de platina. Homossexual sem culpa, Cássia vivia uma fase de alegria e euforia ao lado da fiel companheira de 14 anos, Maria Eugênia Vieira Martins, e do filho de oito anos, Francisco Ribeiro Eller – a quem ela chamava de Chicão –, fruto de uma fugaz relação com o baixista Otávio Fialho, morto num acidente de carro poucos dias antes de o garoto nascer. Durante muito tempo, Cássia manteve segredo em torno do nome do pai. A princípio cogitou-se que ele seria o percussionista curitibano Jorge Felipe, antigo amigo que ela reencontrou em Salvador, em 1992. Hoje, a discussão muda de rumo e em breve a Justiça determinará quem ficará com a guarda do menino, que sempre dizia ter duas mães, Cássia e Eugênia.

As tiradas de Chicão, aliás, costumavam divertir, e muito, Cássia Eller. Certa vez, enquanto ouvia o próprio disco, flagrou o filho com um de Marisa Monte nas mãos pedindo a ela para trocar de som. Quando em 1999 lançou o álbum Com você… meu mundo ficaria completo, novamente se divertiu contando em entrevistas que Chicão achava que ela estava berrando menos e cantando melhor. Durante a carreira, Cássia foi realmente lapidando a voz. Mas desde o começo não deixava ninguém impassível. Não só com suas interpretações intuitivamente moldadas para serem definitivas como diante de suas performances nos palcos, muitas memoráveis, entre elas a do Rock in Rio 3, quando levantou a camiseta e mostrou os seios. Não tinha vergonha do corpo. Na época em que dividia com cinco pessoas uma casa no bairro carioca do Recreio dos Bandeirantes passeava tranquila pelos seus domínios sem nenhum tipo de roupa. “Desde criança foi sempre assim, todo mundo em casa anda nu”, revelou.

A diferença entre a Cássia Eller personagem dos palcos e a de fora deles era gritante. Apesar da naturalidade da nudez na intimidade, mostrava-se dona de uma timidez quase vertiginosa, acompanhada de uma delicadeza no sorriso e de uma maneira sincera ao falar da vida pessoal, da música e do seu canto que vinha seduzindo cada vez mais pessoas. Em nenhum momento da carreira Cássia foi uma intérprete burocrática. Ao contrário, em canções conhecidas acrescentava emoções e ênfases em versos que muitas vezes passavam despercebidos nas gravações originais. Tinha a coragem de mexer em totens musicais. Ousava e se dava muito bem como nas antológicas regravações de Try a little tenderness, conhecida na voz do mito soul americano Otis Redding – primeiramente registrada no álbum Cássia Eller, de 1994 –, e de Non, je ne regrette rien, do repertório de outro mito, a francesa Edith Piaf, que abre seu recente disco acústico. Também não escolhia uma linha sonora para seguir. Cantava de Luiz Melodia a Jimi Hendrix, de Nirvana a Ataulfo Alves, de Cazuza a Chico Buarque. A todos imprimia certo tom blues-rock, sem, no entanto, lhes tirar as características rítmicas imaginadas pelos compositores. Em 1997 dedicou um disco inteiro a Cazuza – o Augusto dos Anjos do rock brasileiro –, que batizou de Veneno antimonotonia, expressão tirada da belíssima Todo amor que houver nessa vida. Pessoalmente, Cássia Eller levou o verso a sério. Passou anos testando variedade e quantidade de “cicutas” contra a monotonia. Infelizmente não encontrou o antídoto.


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