Durante uma semana, a cidade de São Paulo entrou em festa para celebrar a diversidade cultural. Sotaques, costumes e manifestações artísticas das mais diversas se espalham pela maior cidade da América Latina, transformando-a num grande caldeirão efervescente. Realizado com o apoio do Sesc, do Ministério da Cultura e da prefeitura paulistana, o I Fórum Cultural Mundial serviu para afirmar o valor da arte independente e espontânea, que nasce nos guetos e vielas do mundo e pode ser valiosa ferramenta para o desenvolvimento sustentável. Exemplos disso são movimentos como o hip hop, que nasceu como grito de protesto da periferia de grandes cidades e só depois chegou ao grande público, e do mangue beat, que inovou ao misturar o tradicional maracatu pernambucano com batidas mais agressivas do rock’n’rol. O megaevento, realizado entre os domingos 26 e 4, é fruto de muitos encontros, discussões e articulações. Entre seus objetivos estão: promover o encontro de artistas de diferentes locais que não chegam às emissoras de rádios e tevês, incentivar o resgate de identidades culturais, sobretudo nos países latinos e africanos, e promover o desenvolvimento social por meio da arte. Como pano de fundo, está a negação da massificação imposta pela indústria. No domingo 26, o próprio ministro da Cultura, Gilberto Gil brindou o povo com sua música, fazendo show no Parque do Ibirapuera. Na segunda-feira, foi a vez de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva prestigiar a solenidade oficial, realizada no Teatro Municipal.

O valor dado ao evento pelas autoridades se justifica. Afinal, o Brasil tem uma história de iniciativas sobre a promoção da diversidade cultural. “O Brasil é perfeito para sediar essa reunião mundial. Nós temos todas as condições para fazer essa convocação, como pluralidade e tolerância com as diferenças.” A afirmação, feita em 2002, é do agitador cultural baiano Ruy César Silva, que comanda o Mercado Cultural realizado anualmente em Salvador, já na quinta edição. Naquela época, o Primeiro Fórum Cultural Mundial era apenas um projeto. Na verdade, esse processo de mostrar a cara de artistas anônimos nasceu há mais de dez anos, quando grupos de produtores culturais independentes, que não conseguiam espaço na indústria do entretenimento, se organizaram e passaram a se comunicar em rede, pela internet. Esse movimento resultou no primeiro Mercado, realizado em 1999 com a participação de artistas, produtores e autoridades de várias nações. Ao mesmo tempo, a arte independente começou a cair no gosto dos formadores de opinião. As pessoas passaram a buscar o “alternativo” e entraram na moda termos como “diversidade” e “resgate de identidade cultural”.

O Brasil pode agora olhar com mais cuidado o que está fora do eixo Rio–São Paulo. Um bom exemplo é a intérprete rondonense Keyla Castro, 25 anos. Poucas vezes ela se apresentou fora de Porto Velho e, se não fosse pelo Fórum, o público paulistano talvez jamais conhecesse seu trabalho. Ela saiu da capital de Rondônia com uma comitiva de produtores e artistas locais, trazendo na bolsa seus CDs independentes para distribuir no evento. “Fui criada em sítio e cantei em público pela primeira vez aos 16 anos. Entrei numa banda e depois parti para a carreira solo”, explica a cantora de beleza brejeira. Afinada e cheia de estilo, ela interpreta canções famosas de MPB e também de compositores regionais. Algumas de suas músicas têm arranjos de violão com sons típicos de sua região, tirados de chocalhos e maracas de sementes. Outro que mostrou um pouco da cultura de Rondônia no Fórum foi o grupo Bio-Instrumentos, do luthier e músico Barnard Carlos. Ele fabrica instrumentos usando madeiras e sementes colhidas nas margens do rio Madeira. “É um trabalho de pesquisa, já que esses instrumentos já eram usados pelos índios. Um grupo de percussionistas testa o que faço para deixar o mais perfeito possível”, diz ele.

A produção artística regional tem, devagar, conquistado cada vez mais público e prestígio entre formadores de opinião, empresários e governo. Está ficando claro que fomentar e divulgar esses trabalhos pode gerar benefícios econômicos. Em seu livro Barões da cultura (Ed. Biruta, 2003), o antropólogo Carlos Alberto Dória, ex-professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, afirma que as identidades locais são determinantes no mundo globalizado. “Um território precisa valorizar as suas particularidades para encontrar seu lugar nesse mercado cada vez mais competitivo e sem fronteiras. Este tem sido o caminho trilhado por vários países, especialmente europeus, ao fomentar estratégias de desenvolvimento local”, garante. Nesse contexto, eventos que funcionam como pontos de encontro de agentes culturais anônimos podem gerar bons negócios.

Agito – A estrutura do Fórum Cultural Mundial é dividida em três partes. Durante a semana toda, o público foi brindado com mostras artísticas espalhadas por espaços municipais, pelas unidades do Sesc e em alguns institutos culturais privados. No Palácio das Convenções do Anhembi estava a espinha dorsal do evento. De um lado, conferências e mesas-redondas, nas quais intelectuais, ativistas, secretários e ministros sentaram para discutir desde políticas públicas até religiosidade. Do outro, o agito da Feira de Idéias e Oportunidades, onde reinou uma anarquia saudável. Por ali havia de tudo: cantores oferecendo seus CDs numerados pessoalmente, shows de artistas circenses, produtores trocando cartões de visita e tribos indígenas tocando instrumentos típicos enquanto o pajé discutia política com atores de teatro engajados. Uma grande feira livre. Livros, CDs, vídeos, folhetos, roupas e peças de artesanato estavam à venda. Em cada um dos 73 estandes, uma história bem-sucedida de inclusão social. O espaço e a valorização desses artistas deu a eles a possibilidade de viver da sua arte. Hoje, com selos independentes e o apoio de entidades e associações, transformam suas criações em renda.

Houve shows até nas salas de conferências. Um grupo de índios kariris-xocós,
da cidade alagoana de Porto Real do Colégio, participou de uma mesa- redonda sobre políticas culturais para povos indígenas. No final, não tiveram dúvidas. Puxaram as pessoas para a toré – dança e canto típicos das 50 etnias indígenas do Nordeste brasileiro, como parte de um ritual para atrair bons espíritos. Além de mostrar sua cultura, os índios reivindicaram o direito de acesso às novas tecnologias, como a internet. Esse é o real sentido do Fórum. Valorizar o tradicional e preservar as raízes, mas não perder o foguete da modernidade. “Não podemos nos fechar em guetos. O processo tecnológico é inevitável e, se bem administrado, saudável”, explica o antropólogo João Pacheco, autor do livro A viagem de volta – etnicidade, política e reelaboração cultural do nordeste indígena, resultado de pesquisa com tribos da região. O Fórum cuidou, portanto, de arte e cultura, mas também de economia. E, claro, de política.