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"Meu sobrinho sempre gostou do melhor. Desde pequeno, nunca tomou Dolly. Dava um jeito e trazia Coca-Cola”, diz a cabeleireira Maria Cirlene Antonio (foto abaixo). “Se ele for comprar uma blusa, não pode ser em qualquer lugar. Tem que ser no shopping. Tênis não pode ser Conga. Ele só aceita se for de marca.” Além da preferência por roupas e calçados de grife, Maria Cirlene lembra que, recentemente, o adolescente de 14 anos adquiriu uma moto Honda CBX 250 cilindradas. Com que dinheiro? “Isso eu não sei. Só sei que não é roubada porque a polícia pesquisou e não encontrou nada”, responde. A cabeleireira afirma que vivia alertando o sobrinho de que, por causa do hábito de furtar carros desde a infância, ele se daria mal. Dito e feito. Na madrugada da terça-feira 25, quando pretendia seguir para um baile funk, o menino foi detido pela 17ª vez e mandado para a Fundação Casa.

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“Minha irmã sempre passou a mão na cabeça
do meu sobrinho”
Maria Cirlene Antonio, tia do adolescente

O garoto – que tem nome francês e um metro e meio de altura – foi pego dirigindo um Kadett furtado. Três adolescentes, inclusive um dos filhos de Maria Cirlene, estavam de passageiros. Outro, guiando a CBX 250, acompanhava o grupo. “A polícia pode estar certa em todas as outras vezes, porque o meu sobrinho não pode ver um carro na rua que pega mesmo. Mas esse não foi ele”, afirma a cabeleireira. “O comportamento, os gestos e o linguajar dele são típicos de quem está talhado para a marginalidade”, avalia o promotor Thales Cezar de Oliveira, que trabalha no caso. O menino permaneceu durante tanto tempo à margem da Justiça porque pelo menos nas sete primeiras detenções ele tinha menos de 12 anos e não podia receber nenhuma medida socio-educativa. Na semana passada, quando foi pego, estava em liberdade assistida por causa de outro furto. “O Estado, sem dúvida, falhou. Foi ineficiente”, diz o promotor Oliveira. “Mas ele só é assim por causa da complacência da família. É um infrator e não podemos tratá-lo como vítima.”

O adolescente vive com os pais e a irmã mais nova no Jardim Ubirajara, no extremo sul da capital paulista. É de uma família pobre, mas não miserável. Comporta-se como se fosse um adulto e o homem da casa. Dá ordens. Mas não obedece ninguém. Nem o pai, um sexagenário aposentado, nem a mãe, diarista. Sai na hora que quer. Volta quando bem entende. Tem um quarto só para ele, enquanto os outros se dividem entre o outro pequeno dormitório e a sala. Por causa desse tipo de desavença, a irmã mais velha deixou a residência e foi morar com o avô. “Ela não concordava porque minha irmã sempre passou a mão na cabeça do meu sobrinho”, relata Maria Cirlene. O garoto não é o primeiro da família a ter problemas com a Justiça. Um de seus tios passou anos encarcerado e, poucos meses depois de ser libertado, voltou para a cadeia. “Acho que foi por tráfico”, afirma a cabeleireira.

O psiquiatra forense Paulo Sergio Calvo, do Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo, alega que esse caso não se trata de uma compulsão por carros ou por dirigir. “O que parece mover esse menino não é o objeto do furto, mas a adrenalina de praticar um ato ilícito.” O médico, que trabalha com adolescentes infratores há mais de duas décadas, afirma que o comportamento dele é compatível com um transtorno de conduta tipificado no Código Internacional de Doenças. “Ele não teve boa formação moral e ética. Enquanto a família, a sociedade e o Estado não impuserem um limite, ele dará vazão aos seus instintos. Ele sabe que o que faz é errado. Mas não contém seus impulsos porque não quer e não consegue. Se nada for feito, a tendência é piorar.” O psiquiatra defende que o garoto permaneça na Fundação Casa, pelo menos até ser submetido a uma perícia minuciosa e definido um tratamento. “É possível atenuar esse problema e, aí sim, a energia dele pode ser canalizada para algo positivo”, diz Calvo.

Os vizinhos contam que, quatro ou cinco dias antes de ser detido, o adolescente fora ameaçado de morte. “Um monte de gente ficou na frente e o cara só deu um tiro pra cima. Falou que, aqui na área, não era pra ele roubar”, afirmou um menino. “Ele já é um profissional. Não sabemos ainda se age com alguma quadrilha. Mas me parece que só é pego quando quer”, acredita o delegado Paulo Andrade, titular do 98º DP, região onde o infrator mora. “Ele é agressivo e refratário. Não respeita ninguém. Quando foi detido pela última vez, mordeu a mão do delegado que estava de plantão.”

Até agora, nem a família nem o Estado foram capazes de conter – e recuperar – um garoto que largou a escola na segunda série e mal sabe assinar o nome. “Os pais não têm recursos culturais nem materiais para lidar com esse adolescente”, afirma Luís Fernando Vidal, presidente da Associação Juízes para a Democracia e coordenador da Comissão de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. “Por mais que o bem material seja valioso e esteja em risco, não podemos colocar o futuro de uma criança em perigo usando apenas a linguagem da repressão criminal. Temos de focar é no desconforto psíquico desse garoto.”

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