Está nas mãos do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), José Arnaldo da Fonseca, o destino de um poderoso ministro, de governadores, parlamen-tares e desembargadores das esferas federal e estadual do Rio de Janeiro. O resultado da investigação a respeito da maior fraude fiscal da história brasileira, batizada de Operação Ouro Negro, vai levar o Judiciário a cortar mais uma vez a própria carne, coisa que não intimida o ministro Fonseca. Ele participou da decisão do STJ que afastou três magistrados do Tribunal Regional Federal da 2ª Região por conta das ligações inflamáveis deles com os capos da máfia dos combustíveis. O processo reúne uma tonelada de documentos, disquetes e computadores apreendidos, além de centenas
de horas de conversas telefônicas gravadas, em que são citados o ministro
da Casa Civil, José Dirceu (PT-SP), e o vice-presidente da República, José Alencar (PL-MG). Já o nome da governadora do Rio Grande do Norte, Wilma Faria (PSB), aparece em ligação direta com os sonegadores. A subprocuradora da República Lindora Maria de Araújo, responsável pelo explosivo processo, não fala sobre o material. “O caso está sob segredo de Justiça, não posso comentar nada sobre ele. Estou examinando os autos com muita atenção. Talvez eu possa falar algo dentro de uns dois meses”, diz Lindora.

As investigações da Polícia Federal em torno da máfia dos combustíveis foram conduzidas pelo delegado Cláudio Nogueira, tido como um dos melhores quadros da inteligência da PF e chegaram muito além de desvendar uma rede de comércio ilegal. O rastreamento telefônico de peças-chave dessa gangue atinge autoridades de vários níveis. O rastro inflamável se dá a partir das conversas do lobista e empresário carioca Amadeu Moreira Ribeiro de Carvalho, apontado pelas investigações como um dos mais poderosos sheiks do bando de sonegadores e fraudadores de gasolina do País. Nas gravações, Amadeu, um tipo que gosta de levar vantagem e vangloriar-se de seus feitos, demonstra esbanjar intimidade com desembargadores. Distribui convites para festas badaladas, oferece mordomias, colocando carros importados à disposição de juízes, e se gaba de ter uma rede de privilégios no julgamento de ações de seu interesse no Judiciário do Rio. E mais: a PF conseguiu identificar todos os auxiliares e parentes da governadora Wilma Faria, envolvidos no esquema de sonegação montado por Amadeu no Rio Grande do Norte. “Temos gravações oriundas do monitoramento telefônico de toda a negociação para se conseguir do governo do RN a inclusão da American Distribuidora no regime de tributação especial”, confidenciou o delegado Nogueira a um parlamentar que o apoiou em uma recente operação.

Os nomes de José Dirceu e de Alencar são citados por Amadeu, que está em Brasília buscando contatos para ampliar seus negócios no setor de combustíveis. Ele é dono da Sul Americana Distribuidora de Petróleo e da American Distribuidora de Combustíveis, em nome da ex-mulher, e de diversos postos de gasolina no Rio. “Em conversa com Marco Antônio, seu sócio, Amadeu comenta que recebe cerca de 30 contêineres por mês e que vai estar em Brasília direto com o vice-presidente da República, José Alencar, um senador e o ministro José Dirceu”, conta o delegado Cláudio Nogueira a respeito dos grampos. Boa parte do diálogo gira em torno dos interesses de Amadeu no ramo petrolífero e na cessão de áreas no Porto de Sepetiba, no Rio, onde existem depósitos clandestinos para armazenar óleo desviado. “Tudo vai depender do José Dirceu”, diz Amadeu na fita, acrescentando que vai jantar com o ministro. Na sequência, comenta que vai “estourar a boca do balão” se tudo der certo. “O Brasil vai ficar pequeno para nossas falcatruas”, conclui ele no telefonema, registrado em 2003. O delegado Nogueira menciona uma segunda conversa gravada, na qual Amadeu afirma que já falou com o ministro Dirceu. É a segunda vez que o nome do vice Alencar aparece na boca de suspeitos que tiveram suas conversas telefônicas gravadas pela polícia em investigações envolvendo a máfia dos combustíveis. Alencar também foi citado na captação da PF que prendeu o bando que operava em Campos (RJ).

Amadeu é um dos personagens principais da mais importante investigação já conduzida por Nogueira, que, publicamente, tem sido cuidadoso ao falar da Ouro Negro. Mas o que diz já basta para causar tremores. Foi assim no dia 11 de junho de 2003, quando prestou um depoimento à CPI dos Combustíveis na Câmara, uma comissão tão eclética quanto suspeita de estar adulterada. “O problema do combustível hoje no País é tão grave quanto o do narcotráfico. Com certeza, há envolvimento de membros do Executivo, do Judiciário e do Legislativo, nas três esferas: municipal, estadual e federal”, acusou o delegado. Depois desse depoimento, a CPI entrou em estado de evaporação.

O deputado Paulo Lima (PMDB-SP), que não fazia parte da comissão, mas conhece bem o ramo – é ex-sócio do Major Dirceu (o empresário Dirceu Antônio de Oliveira, dono da Golfo Distribuidora e apontado como outro grande fraudador) na distribuidora Granel –, chegou a dar uma pista dos motivos. Ele denunciou no plenário da CPI que havia uma dezena de parlamentares usando a comissão para extorquir empresários do setor de combustíveis. “Se quiserem, eu digo o nome dos deputados que foram a São Paulo achacar.” Mesmo com a oferta, ninguém quis ouvir e nada aconteceu. Diante de um público com baixos índices de pureza, o delegado Nogueira prestou um depoimento a conta-gotas, medindo palavras. Sem dar nomes aos bois, foi categórico ao afirmar a atuação de autoridades protegendo a máfia do óleo. Mesmo diante de uma denúncia tão grave, a CPI foi encerrada sem resultado concreto e a gangue dos combustíveis, de acordo com a PF, continua aditivando suas ações nos Três Poderes.

As mutretas na venda de combustível batizado ou com sonegação de impostos podem estar gerando um rombo de R$ 10 bilhões ao ano, pelos cálculos da CPI e da Receita. A principal área de atuação política da máfia para evitar o pagamento da Contribuição de Intervenção de Domínio Econômico (Cide) e burlar o desembolso do Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS) está na Justiça, onde grassa uma indústria de liminares que protegem os espertalhões. ISTOÉ, em sua edição 1811, mostrou uma rede de fraudadores no norte Fluminense que dizia contar com a ajuda do desembargador Raldênio Bonifácio Costa, do Tribunal Regional Federal da 2ª região (RJ e ES), para dar sobrevida a uma distribuidora de combustíveis da quadrilha. De acordo com as apurações de ISTOÉ, na Operação Ouro Negro Raldênio é novamente citado em uma conversa entre dois advogados cariocas que trabalham para integrantes da máfia.

As conversas monitoradas mostram que outras togas cariocas podem estar impuras. Há vários trechos de gravações nas quais Amadeu mostra sua intimidade com o desembargador do TRF do Rio de Janeiro, José Eduardo Carreira Alvim, que, como seu amigo Amadeu, gosta de badalação. Na primeira conversa entre os dois, Amadeu, que tem ações tramitando no TRF do Rio para não pagar impostos, oferece convites para uma disputada feijoada carioca e ainda oferece o motorista para conduzir o magistrado à festança. Em outra gravação, Amadeu conversa com a esposa do desembargador, Terezinha Alvim. Ela se queixa de ter ouvido em um concorrido restaurante carioca – o Antiquarius – que Amadeu consegue qualquer liminar com Carreira Alvim. “Na hora que quiser, chega lá e ele (Alvim) despacha na mão mesmo.” Terezinha desaprova afirmando que uma conversa como esta em uma mesa de restaurante pegaria mal para a imagem do marido. As conversas de Terezinha Alvim também revelam um rosário de relações entre clientes e juízes. A mulher de Alvim diz que o marido lhe contou que o que ouvira no restaurante seria motivado por uma ação envolvendo a American Distribuidora de Petróleo, da ex-mulher de Amadeu, Samantha de Almeida Vacite.

De fato, está nas mãos de Carreira Alvim um recurso do processo
20035101002677-0 no qual a American discute o pagamento da Cide.
Os advogados de Amadeu são os de sempre: os irmãos José Roberto e Arthur Hannig da Gama, outro que foi flagrado ao telefone e trabalha no mesmo prédio
de Amadeu. Hannig comenta com Amadeu o andamento de diversas ações
na Justiça envolvendo dívidas das empresas do lobista, entre elas a Cronus Informática e a PCS System Comércio de Representações. Segundo as investigações, Hannig tem um parente no TRF que seria o elo para ajudar no
tráfico de influência. “Além da American, Amadeu se apresentava como representante de outras duas distribuidoras: a TM e a Inca, também beneficiárias de liminares”, aponta o deputado Luciano Zica (PT-SP), um dos integrantes da CPI que mais documentação levantou a respeito da máfia do óleo.

Usina de Nova Friburgo – Já a juíza da Vara Federal de Nova Friburgo, Érika Schmitz Assumpção Ramos, é mencionada nas interceptações pela mulher de Alvim. Terezinha diz que Érika mereceu a mordomia de ser levada ao trabalho pelo Audi de Amadeu. A PF flagrou conversas íntimas entre Érika e Amadeu e entre o empresário e um de seus advogados, de nome Ronaldo. Ele comenta que se aproximou da juíza para “conseguir facilidades na movimentação processual de Amadeu”. A CPI dos Combustíveis fez uma diligência em Nova Friburgo em 25 de agosto do ano passado, ouviu nove pessoas e concluiu que ali funcionava uma “indústria de liminares”.
Isso teria propiciado, inclusive, a instalação de filiais nesta cidade por parte
de várias distribuidoras de combustíveis que seriam contumazes na postulação de obtenção de liminares que afastam a incidência tributária”, diz o relatório aprovado pela Comissão.

Outros desembargadores – federais e estaduais – também são alvos das incursões da PF. No início das investigações o Ministério Público Federal pediu o sigilo do inquérito por causa do envolvimento de desembargadores do TRF da 2ª região com as distribuidoras de combustíveis. No despacho do ministro do STJ, José Arnaldo da Fonseca, do dia 30 de março deste ano, é mencionada a existência de “fortes indícios da existência de um esquema (…), por meio de ações propostas na Seção Judiciária do Rio de Janeiro, patrocinadas por escritórios intimamente ligados ao desembargador federal José Ricardo de Siqueira Regueira, relator dos recursos no Tribunal Regional Federal da 2ª região”. Regueira foi um dos três desembargadores afastados por suspeita de venda de sentença há duas semanas por decisão do STJ. Em outra conversa com uma pessoa identificada como Cid, Amadeu também fala de suas relações com outros desembargadores estaduais, entre eles Wilson Marques e Jorge Magalhães. Mas o diálogo mais suspeito é entre o lobista e o desembargador Jorge Romeiro. Os dois conversam sobre um acerto em dinheiro envolvendo uma ação. Romeiro diz que tem um “agiozinho” sobre seu pró-labore de R$ 10 mil. A pessoa que estaria na triangulação do tal acerto não é identificada e Amadeu diz que ela “é uma picareta profissional”. A PF suspeita que a pessoa oculta seja Ariadne Coelho, viúva de Jair Coelho, que ficou conhecido como rei das quentinhas do Rio, denunciado em um esquema fraudulento no fornecimento de alimentação para os presídios cariocas. Em outro diálogo captado pela PF entre Ariadne Coelho e uma amiga, ela chama Amadeu de “bandido”, mas confirma que deve os R$ 10 mil ao desembargador Romeiro e que em um jantar em sua casa o dinheiro seria pago de qualquer maneira “Pensei até em tirar do próprio Amadeu para dar para Romeiro”, diz Ariadne. Em outros diálogos, Amadeu conta também que seu advogado Arthur Hannig – “pelos caminhos dele com um desembargador amigo” – obteve liminares milionárias em São Paulo, no valor de R$ 380 milhões, e que uma outra, de R$ 2 bilhões, estava na lista de espera.

Conexão nos Estados – Amadeu tem uma relação especial com governos estaduais. Nas conversas são mencionados um acerto de venda de combustíveis com o secretário de Fazenda de Roraima sem pagar ICMS e, com detalhes, a operação feita com o governo potiguar. No Rio Grande do Norte, ele obteve isenção fiscal para que uma de suas empresas – a American Distribuidora – retirasse de Manguinhos, no Rio de Janeiro, gasolina livre de impostos. Com o esquema, captado nas gravações de março do ano passado, Amadeu faturava um extra de R$ 1 por litro de combustível vendido. A Polícia Federal apurou que, em troca, ele teria depositado em contas previamente indicadas três parcelas de R$ 300 mil. Segundo a PF, o homem que apresentou Amadeu à cúpula do governo potiguar foi o ex-presidente da Data Norte, Raimundo Hélio Fernandes, hoje candidato à prefeitura em uma cidade do interior. De acordo com a investigação, parte das operações passou por familiares da governadora, como a secretária de Assuntos Sociais, Márcia Maia, e seu outro filho, Lauro, que participou, junto com o subsecretário de Tributação, Fernando Soares, da feitura do ofício para a refinaria de Manguinhos que confirmava regime especial de tributação da American. Cláudio Nogueira reforça: “Deve-se ressaltar ainda que existe possível prática de crime perpetrado por interpostas pessoas ligadas a uma governadora de Estado que teria concedido benefício fiscal à empresa objeto de investigação em troca de R$ 400 mil, sendo identificada a operação de transferência de R$ 200 mil pagos em cheques para assessores diretos da dita governadora do Rio Grande do Norte, sra. Wilma Maia.”

O esquema político de Amadeu no Congresso Nacional, revelado na edição 1810 de ISTOÉ, tinha como chefe o deputado federal André Luiz (PMDB-RJ). “Amadeu controlava as ações na CPI”, analisa o delegado Nogueira. O lobista empresário também tinha diálogo fácil com os deputados Nelson Bornier (PL-RJ) e o próprio Paulo Lima, que nunca revelou os nomes dos achacadores. Durante o depoimento do presidente da ANP, Sebastião do Rego Barros, na CPI dos Combustíveis, André Luiz mostrou que é disciplinado. Fez as cinco perguntas ditadas por Amadeu para constranger Rego Barros e pressionar as grandes distribuidoras de combustível. Entre as cinco questões, André Luiz fala de liminares contra PIS e Cofins obtidas pela Esso e insinua que a BR Distribuidora também adultera combustível. “O envolvimento de André Luiz é inequívoco”, avalia um dos advogados que tiveram acesso aos autos. Depois de fazer o dever de casa, o deputado ligou de volta para Amadeu relatando que os questionamentos deram resultado, pois as grandes distribuidoras pediram uma trégua e, em contrapartida, Amadeu conseguiria novamente efetuar o bombeamento milionário em Manguinhos. Após a abertura da CPI, a refinaria havia decidido não vender combustível mediante liminares judiciais.