Não bastasse a pirataria explícita das esquinas e aquela mais difícil de ser reprimida, feita em casa com arquivos mp3, mais uma reviravolta está colocando a indústria fonográfica nacional de pernas para o ar. Exceto por alguns nomes que resistem bravamente dentro das gravadoras multinacionais – caso de Caetano Veloso e do ministro da Cultura, Gilberto Gil – um time considerável de medalhões da MPB passou a não renovar seus contratos com as empresas nas quais desenvolveram grande parte de suas carreiras, passando a lançar discos por selos e gravadoras menores. De Milton Nascimento – que finaliza quatro trabalhos em CD e DVD pelo selo próprio Nascimento – a Djavan, recentíssimo dono da gravadora Luanda Records, pela qual acaba de colocar no mercado o ótimo Vaidade, amplia-se o leque de artistas que dispensaram o suporte milionário das majors.

Na lista dos que optaram pelos pequenos, Simone chega às lojas esta semana
com o álbum Baiana da gema, produzido pela Maynard Music, entoando com
alegria apenas músicas inéditas de Ivan Lins. “Ninguém mais quer ficar dentro
das grandes gravadoras”, garante Ivan, também desimpedido. “Vai fazer o que lá?
As pessoas estão tomando conta de si próprias, se produzindo e saindo atrás
do seu público.” Há dois anos longe da Universal Music, Simone diz que faria
Baiana da gema de qualquer forma, até às próprias custas. “A indústria só quer o bônus, não o ônus. Quer que tudo saia do artista. Ela não pode diminuir o padrão dele.” Outra que partiu em busca de nova casa é Gal Costa. Depois de ter passado pela extinta gravadora Abril e pela Indie Records, ela negocia com a Trama. Mesmo caso de João Bosco, que lançava seus discos pela Sony Music – o excelente Malabaristas do sinal vermelho (2003) vendeu apenas dez mil unidades. À debandada geral, iniciada há três anos com Maria Bethânia, que trocou a BMG pela refinada Biscoito Fino, onde criou o selo Quitanda, acrescenta-se Zizi Possi e Paulinho da Viola, ambos sem contrato.

Neste cenário de mudanças, a via da independência está se revelando a única possível. A novidade, contudo, é que independente hoje em dia não tem mais a conotação de fundo de quintal da década de 1980. Com a tecnologia digital, tornou-se possível gravar em estúdios caseiros discos de insuspeita qualidade técnica. Pode-se imaginar, então, o grau de excelência a que se chega quando se dispõem de microfones avaliados em mais de US$ 5 mil e mesas de gravação das melhores marcas, como as do estúdio Em Casa, que Djavan montou no jardim da sua residência, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. “Quando decidi construir o estúdio, coloquei na cabeça que tinha de ser profissional. Gosto de fazer as coisas direito, por isso pesquisei bastante. Não é uma coisa irresponsável”, afirma Djavan, longe da Sony Music, depois de 22 anos de contrato.

 

Compartilha a mesma opinião a empresária Marilene Gondin, à frente dos negócios de Milton Nascimento, ex-Warner Music há um ano. “Os artistas não estão fazendo discos desinteressados no sucesso comercial. Mas todos querem buscá-lo com qualidade.” Entre os projetos imediatos do selo Nascimento estão os DVDs Pietá, A sede do peixe e Ponto de partida, e os álbuns de Marina Machado e de Bebeto, ex-baixista do Tamba Trio. “Desde 2001 o Milton estava fascinado com a idéia de ter nas mãos um instrumento para desenvolver os projetos dele e de gente nova, trabalhos que hoje dificilmente encontraria espaço nas gravadoras”, conta Marilene.

Reclamação – A insatisfação com o tratamento recebido pelas multinacionais, interessadas em resultados mais imediatos, é uma reclamação comum dos artistas da MPB. Gal Costa, que agora só assina contrato para a gravação de um único CD – geralmente, o cantor se compromete em lançar três trabalhos –, diz que saiu da BMG porque se sentia muito insatisfeita. “Não estava fazendo os projetos que queria. Então, pedi minha liberação”, conta ela. “Hoje, as gravadoras pequenas têm força, garra, tesão e capacidade para ser agressivas no mercado.” É verdade. Mesmo sem o esquema de divulgação dos bons tempos, os artistas conseguem chegar ao público de maneira eficaz. Gal, por exemplo, teve a canção Nossos momentos entre os temas-chaves da recém-terminada novela global Celebridade. No mesmo caminho, a balada Se acontecer, de Djavan, e o samba É festa, de Simone – carros-chefes dos seus respectivos CDs –, já tocam insistentemente na recém-estreada Senhora do destino.

Presidente da Trama, João Marcello Bôscoli conta que se sentia triste toda vez que ficava sabendo de mais um nome sem contrato. Hoje, vê os novos arranjos ganharem saldo positivo. “Aquela época de pegar o artista e colocá-lo no estúdio com um repertório na frente, montado à sua revelia, não cola mais”, afirma Bôscoli. “Quanto menor a gravadora, melhor o acompanhamento.” Contudo, comenta-se nos meios especializados que, no momento da revisão dos contratos dos grandes nomes da MPB, o que tem pesado são os altos valores e as cada vez mais dispendiosas produções de discos, somas impróprias para os atuais tempos de vendas minguadas. Zizi Possi, ex-Universal Music há dois anos, confirma estes bastidores. Mas culpa as próprias gravadoras por inflacionarem o mercado. “Os contratos só ficaram caros porque foram insuflados por esses caras (os executivos)”, espeta Zizi, que estuda propostas e seleciona músicas para um novo trabalho a ser lançado no fim do ano. “Eles colocaram na cabeça dos artistas que todos tinham de vender milhões. Faziam adiantamentos homéricos, como dar de luvas uma Mercedez ou viagens de primeira classe.”

Bôscoli acredita que a era de esbanjamento é página virada. “Gravadora não é banco. Todos aqueles luxos com aviões fretados e clipes de meio milhão de dólares eram gastos que qualquer estudante de economia sabia que não iam durar. Era uma visão construída pelas próprias gravadoras. Hoje, quem quiser carro blindado que pague.” Djavan, que viu sua vendagem cair dos dois milhões de CDs de Djavan ao vivo (2000) para os 110 mil de Milagreiro (2001), vai além. Para ele, a única forma de dar sobrevida à combalida indústria fonográfica – cujas metásteses se espalham internacionalmente – é atacar a pirataria com a redução drástica do preço dos discos. Prática que as grandes gravadoras, mesmo diante de um poderoso inimigo, estão longe de adotar.