Há quem diga que encarar a morte de frente é um santo remédio para se valorizar a vida. Uma exposição de 25 corpos humanos e de duas centenas de órgãos dissecados percorre o mundo com esse espírito. Ao expor as entranhas de pessoas que doaram seus corpos para a ciência, a mostra pretende chamar a atenção para as relações entre a saúde do corpo, o aparecimento de doenças e o estilo que cada um escolhe para viver. Por onde quer que passe, ela provoca ondas de controvérsia e curiosidade.

Batizada de Body Worlds, ou Mundos do corpo, a exposição fez sua estréia em continente americano no início deste mês. Até janeiro de 2005, o interior dos cadáveres ficará exposto no Centro de Ciência da Califórnia (mais informações no site: www.californiasciencecenter.org), em Los Angeles, nos EUA. Logo na première, o show da vida atraiu 2.600 americanos, entre adultos e crianças. Desde que estreou no Japão, em 1995, os corpos, pés, mãos, fatias de cérebro e órgãos inteiros, como pulmão, estômago, rins e intestino, já foram vistos na Áustria, Suíça, Bélgica, Grã-Bretanha, Taiwan e Alemanha, num total de 15 milhões de pessoas.

Na Bélgica, 500 mil visitantes se aglomeraram em filas para aprender mais sobre o funcionamento do corpo. As reações do público são diversas. Há quem considere um espetáculo grotesco e de mau gosto expor os cadáveres em posições que lembram suas atividades cotidianas quando vivos. É no mínimo bizarra a imagem do ciclista montado numa bicicleta, ou a do atleta com uma bola de basquete entre as mãos. Mais ainda a do enxadrista, em carne e osso, debruçado sobre o
tabuleiro. Desprotegidos da pele, os corpos expõem seus nervos, tendões, músculos e ossos embalsamados.

Para alguns, examinar as entranhas humanas com esse grau de detalhe é um privilégio. Até porque as lições de anatomia, dissecação e autópsia são restritas ao universo de médicos e especialistas. Na abertura da mostra em Londres, no ano passado, um visitante estendeu um cobertor sobre o cadáver de uma grávida por não conseguir encarar o feto de oito meses que ela trazia no ventre. Além do bebê, todo o aparelho digestivo e reprodutivo da mulher embalsamada estavam à vista.

De ficção, a exibição mórbida tem pouco. Os corpos passaram por um processo chamado “plastinação”, que substitui os fluidos naturais por uma espécie de plástico que confere rigidez aos cadáveres, que ficam preservados e sem odor. Na Alemanha, terra natal do inventor da técnica, o cientista Gunther von Hagens já foi comparado a Hannibal Lecter, o canibal que inspirou o filme O silêncio dos inocentes, e ao doutor Frankenstein, o cientista da literatura que criou um monstro com seu nome. Durante a exposição dos corpos humanos na cidade alemã de Frankfurt, a Igreja luterana protestou alegando que ela representava um insulto aos mortos.

Nem todos concordam. Depois de ver o espetáculo, pelo menos seis mil pessoas assinaram documentos doando seus corpos ao instituto de Hagens. Para esses milhares de visitantes, ser embalsamado para a posteridade parece um destino mais nobre do que o crematório ou o cemitério. Dos 25 corpos mumificados, a maioria foi dissecada e teve a pele removida para revelar músculos, ossos,
nervos e órgãos inteiros. Alguns demonstram os efeitos de doenças sobre seus órgãos, como câncer e úlcera. Um dos objetivos do show é alertar para como as escolhas que fazemos em vida afetam nossos corpos. “As pessoas saem com vontade de cuidar melhor da saúde”, diz Jeffrey Rudolph, presidente do Centro de Ciência da Califórnia.

Egito – O fascínio pelo interior do corpo humano vem desde o início dos tempos. Os antigos egípcios se especializaram em anatomia para aplicar suas técnicas de mumificação. Nos livros, há registros pré-históricos de rituais que sugerem grande familiaridade com as vísceras humanas. Entre 1500 e 1800, o conhecimento da anatomia era restrito à elite européia abastada e circulava em livros, museus e bibliotecas. As cerimônias públicas de autópsia ocorriam dentro de igrejas. “Durante 300 anos, a importância do corpo era mais religiosa do que científica”, diz von Hagens. “Era uma forma de reconhecer a beleza da criação de Deus.”

Expoentes da arte, como o inventor italiano Leonardo da Vinci, tiveram papel de destaque nas reproduções artísticas das entranhas humanas. O pintor do famoso Monalisa esmiuçava cadáveres para fazer seus desenhos anatômicos. Em 1543, o dissecador Andreas Vesalius reuniu suas descobertas em De Humani Corporis Fabrica. O livro de 600 páginas traz informações detalhadas, várias ilustrações artísticas das vísceras e foi o precursor da anatomia moderna. Suas figuras ilustraram manuais e enciclopédias. Sem contar as discussões de filósofos, alquimistas, teólogos e astrólogos. Até os dias de hoje.