Meio-dia e o olho só quer saber de fechar. Três da tarde e o sono bate forte, quase invencível. Nem mesmo o décimo cafezinho do dia é capaz de manter a disposição, o alerta, a concentração. Essa situação, que denuncia uma ou várias noites mal dormidas, está se tornando cada vez mais frequente na vida de muita gente. Nos consultórios médicos especializados, já se pode sentir o aumento no número de vítimas de um sono que não descansa, que não dá um tempo para o organismo retomar as energias e começar tudo de novo no dia seguinte. No Grupo de Pesquisas Avançadas em Medicina do Sono, do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP), por exemplo, só neste ano houve um crescimento de 30% no número de pessoas que procuram o serviço queixando-se de problemas para dormir em relação a 2003. “Elas reclamam que dormem pouco, acordam de madrugada e geralmente despertam cansadas”, informa o neurologista Rubens Reimão, coordenador do serviço. Estudos científicos internacionais endossam a afirmação do médico. “Os trabalhos mostram que 70% da população mundial manifesta pelo menos uma vez na vida insatisfação com relação à qualidade do sono”, diz a médica Dalva Poyares, professora da disciplina de medicina do sono da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

As causas desse quadro lamentável misturam velhos e novos inimigos. Entre os mais antigos estão razões físicas como a apnéia do sono (distúrbio caracterizado pela interrupção da respiração durante o descanso) e algumas ligadas ao estilo de vida – o stress e a competitividade profissional, por exemplo. Com medo de perder o emprego ou de jamais ser lembrado na hora de uma promoção, muitos empregados desdobram-se para dar conta do serviço. Levam tarefas para casa e adiam a hora de ir para a cama. E quando conseguem dormir são interrompidos pelas preocupações.

Internet – O trânsito infernal das grandes cidades é outro conhecido que obriga a pular mais cedo dos colchões para não chegar atrasado e protela a volta para casa à noite, empurrando o descanso para mais tarde. Mas os avanços da vida moderna como a internet, os celulares e os jogos eletrônicos também estão contribuindo para subtrair ainda mais as horas sob o cobertor. “Juntos, esses fatores reduzem em média quatro horas de sono por dia”, calcula o pneumologista Flávio Magalhães, do Laboratório de Distúrbios do Sono, do Rio de Janeiro. O médico chama esses recursos de “ladrões do sono”. Na sua opinião, esses itens são em parte responsáveis pela formação de uma sociedade de insones. “Hoje, é moderno dormir tarde, embora a maioria necessite acordar cada vez mais cedo para estudar ou trabalhar”, diz Magalhães.

O fenômeno é global. Um recente estudo feito no Japão mostrou que 53% dos usuários da internet naquele país passaram a dormir mais tarde e 45% tiveram menos horas de sono porque ficaram navegando na rede. Nos Estados Unidos, um trabalho concluído em março pela Fundação Nacional do Sono trouxe mais revelações preocupantes. Na pesquisa, foram ouvidos 1.400 pais. Nada menos do que 70% reclamaram das dificuldades dos filhos para dormir e manter o sono contínuo. Outra conclusão foi a de que 20% das crianças estavam dormindo duas horas a menos por semana por causa da televisão no quarto. E aqui no Brasil, embora não se disponha de estatísticas, também se sabe que a combinação internet mais celular tem levado muita gente, em especial os adolescentes, a dormir mais tarde do que deveria. É o caso da estudante Vanessa Assumpção da Silva, 18 anos, de Brasília. Ela navega na rede desde os 13 anos. Nas férias, varava as noites no computador. No período de aulas, o tempo para usar a internet – apesar dos protestos de sua mãe – era até as duas da madrugada. No dia seguinte, porém, tem de estar na escola às sete da manhã. “Acordava cansada e não prestava atenção nas matérias”, lembra-se a garota. Hoje, Vanessa tenta desligar o computador (com muita força de vontade) às 11 da noite. “Mas demoro pelo menos duas horas para dormir e continuo levantando exausta”, lamenta.

Ciclos – Essa sensação experimentada pela estudante – a de que o sono não serviu para descansar o organismo – é compreensível. Dormir bem é fundamental. E isso independe da quantidade de horas dormidas – alguns descansam com três horas e outros precisam de dez. O que importa é a qualidade do sono. Para que ele seja reparador, é necessário que suas cinco etapas sejam concluídas sem interrupções. Na primeira, o sono é muito leve. Na segunda, a temperatura corporal e o ritmo cardíaco diminuem. Na terceira, o organismo começa a entrar em sono profundo. Na quarta, se aprofunda ainda mais. É aí que o corpo começa a se recuperar do cansaço, tarefa finalizada na quinta etapa. Nessa fase, a atividade cerebral está a pleno vapor. Ocorrem os sonhos e as informações que interessam são fixadas na memória.

Quando esse ciclo não é completado, os resultados são desastrosos. Só para ter uma idéia de sua importância, é durante o sono, por exemplo, que é liberado cerca de 90% do hormônio de crescimento. “Por isso, criança que não dorme bem não cresce bem”, afirma a neurologista Andrea Bacelar, do Laboratório do Sono Carlos Bacelar, no Rio. Em adultos, a liberação prejudicada desse hormônio compromete o tônus muscular e o desempenho físico. Ficar sem dormir, dormir pouco ou dormir mal ainda causa irritação, mau humor e muita dificuldade de aprendizado, de concentração e de memória. Isso tudo se reflete na vida familiar e profissional. “Há vários estudos mostrando que a perda de uma hora e meia de sono por noite pode reduzir em até 30% a capacidade de trabalho de uma pessoa”, diz a médica Gisele Minhoto, vice-presidente da Sociedade Brasileira do Sono.

Em estudos feitos com animais, a privação do sono induziu também à morte celular e ao envelhecimento precoce. “Outros problemas observados foram hipertensão arterial, obesidade, depressão e transtornos de humor”, acrescenta a médica Andrea. Por motivos como esses, o fiscal de tributos carioca Marcelo Feital, 33 anos, vive angustiado. Ele precisa de oito horas de sono para se sentir bem, mas costuma ser sabotado pelo próprio relógio biológico. É à noite que ele tem as melhores idéias e, por isso, não dorme antes das 2 horas da manhã. Atualmente, tem conseguido montar seu próprio horário de trabalho – o que significa acordar ao meio-dia. Mas muitas vezes é obrigado a programar o despertador para as 6 horas da manhã. Conclusão: passa o dia feito um robô. “Tenho perdido muitas oportunidades profissionais e pessoais”, lamenta Marcelo.

Descanso – O primeiro passo para voltar a fazer as pazes com o travesseiro é mudar de hábitos. É preciso se desligar das tarefas – internet, televisão, videogame, por exemplo – pelo menos duas horas antes de dormir. Este é o tempo necessário para que a mente comece a relaxar e a se afastar das atribulações do dia-a-dia. Só assim é possível preparar o corpo para o descanso. O executivo Jayle Amaral de Modena, 55 anos, de São Paulo, aprendeu essa lição. Há dois anos, quando era presidente de uma multinacional, passou por períodos estressantes. “Acordava à noite e passava horas pensando na alta do dólar e em exigências financeiras que precisavam ser cumpridas”, lembra-se. Na época, ele ficou completamente estafado. Para resolver a questão, mudou radicalmente de vida. Pediu demissão, começou a trabalhar por conta própria e a praticar caminhadas matinais e noturnas na companhia de seus cachorros John e Jack. “Aprendi a não me cobrar tanto, faço meu horário e me exercito de forma prazerosa, passeando com meus cães”, diz. As mudanças valeram a pena. Hoje, Modena dorme bem e acorda revigorado. Outras atitudes, como fazer do quarto um ambiente agradável, com temperatura amena (nem tão quente nem tão frio), escuro e livre de barulhos, também ajudam.

Remédios, só em último caso. A classe de medicamentos indicada é a dos benzodiazepínicos, que funcionam como indutores do sono. Segundo os médicos, as novas versões causam menos dependência. E deve chegar no ano que vem ao Brasil a droga modafinil (nome comercial Provigil). Vendida em vários países para tratar, por exemplo, a sonolência causada pela apnéia, ela é consumida por muita gente que não sofre de nenhuma doença, mas vive com sono, já que ajuda a manter o alerta e a concentração. No entanto,
esse uso é criticado pelos médicos. “A droga não deve ser usada como substituto de uma boa noite
de sono”, afirma o neurologista Flávio Alóe, do Laboratório do Sono do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo.

Quando nenhuma das medidas funcionar ou por algum motivo tornar-se inviável adotá-las, ainda assim é possível tentar compensar as horas perdidas de sono no dia seguinte. A atriz Julia Lemmertz, por exemplo, compensa com meditação diária o descanso que não usufruiu. “Meditar aumenta minha concentração, o que é bom para decorar textos, e também me ajuda a dormir bem, mesmo sendo por pouco tempo”, conta ela, que, por causa da vida corrida, dorme menos do que gostaria. Outra recomendação é tirar um cochilo no meio da tarde. Eles de fato podem compensar os déficits de sono noturno. “É por isso que insistimos na adoção do hábito da sesta”, afirma o neurologista Geraldo Rizzo, presidente da Sociedade Brasileira de Neurofísica. Deve-se dormir 30 minutos ou uma hora e meia. Na primeira opção, descansa-se antes de entrar na fase profunda do sono e na segunda desperta-se depois de cumprir as etapas do ciclo. O que não pode é acordar no meio do sono profundo porque se continuará cansado.

Estrada – No mundo, algumas empresas já providenciaram espaços de repouso onde seus funcionários possam tirar cochilos reparadores. Há uma companhia brasileira, no entanto, que foi além. A Empresa de Transportes Rodoviários Águia Branca, de Vitória, criou, em 2000, um programa de prevenção e tratamento de distúrbios do sono direcionado aos seus 1.100 motoristas de ônibus. O objetivo é descobrir precocemente e cuidar de problemas que prejudiquem o rendimento do funcionário na estrada. A primeira medida foi montar em seis pontos de diversas rodovias as “salas de estimulação do alerta”. São espaços onde os motoristas recarregam a bateria. Ali, há lanches leves e estimulantes (compostos por fruta, suco, café e leite) para que o funcionário não fique com a sensação de estômago pesado e sinta sono. Há também uma bicicleta ergométrica na qual o funcionário pedala por 20 minutos sob luz artificial. “São mecanismos para deixá-lo em estado de alerta”, explica o médico Sérgio Vieira, responsável pelo programa, que ganhou o Prêmio Volvo de Segurança em 2003.

Outro recurso utilizado para medir o cansaço do motorista é um teste feito na partida e chegada de cada viagem. Além disso, durante todo o percurso todos carregam no pulso um pequeno aparelho que apita quando começa a ocorrer um processo de relaxamento muscular – um dos primeiros sinais de que se está com sono. Os resultados mostram que tudo isso funciona. Em 2000, a empresa tinha 21 milhões de quilômetros percorridos sem acontecer um acidente grave. Hoje, são 81 milhões. O motorista José Carlos Martins Brandão, 33 anos, se beneficiou do programa. Está na companhia há quatro anos e meio e durante um bom tempo sentia muito cansaço nas viagens. “Não conseguia mais chegar bem no destino final”, recorda ele, que hoje faz as viagens de forma tranquila.