Entre tantas pequenas manias, como adorar ouvir linha cruzada e viajar de ônibus urbano ou de metrô só para puxar assunto com as pessoas, a premiada dramaturga e escritora Maria Adelaide Amaral conserva um hábito por muitos considerado excêntrico. Em dias ensolarados ou nublados, não raro ela pode ser flagrada passeando em cemitérios com um bloquinho de anotações nas mãos. Se a conversa com anônimos lhe dá subsídios para enxertar diálogos sempre muito vivos, é no silêncio entre túmulos que a autora busca a luz que falta para fechar uma cena ou criar uma situação para seus livros, peças ou minisséries. Entre elas a inesquecível Um só coração, assinada em parceria com Alcides Nogueira, na qual uma São Paulo mais leve e culturalmente efervescente foi mostrada com requinte e riqueza de detalhes. Mestra em desmistificar personagens conhecidas, tornando-as mais humanas nos seus defeitos e emoções, no momento Maria Adelaide saboreia um redundante sucesso. É o espetáculo Mademoiselle Chanel, que vem lotando o teatro Faap, em São Paulo, com Marília Pêra – em momento soberbo – interpretando um texto sagaz e sarcástico como o mito da alta-costura que lhe serviu de inspiração. Sua grife também pode ser admirada em Tarsila – peça sobre a pintora modernista Tarsila do Amaral que cumpre turnê pelo Brasil – e na perturbadora comédia dramática Querido estranho, em cartaz nacional na sexta-feira 23, adaptação para as telas do diretor Ricardo Pinto e Silva da peça Intensa magia, assinada por Maria Adelaide em 1996.

Com uma trama circunscrita a um só dia, Querido estranho é um golpe mortal nas relações familiares ao mostrar com acidez os conflitos, as inseguranças e o egoísmo que levam as pessoas a serem achatadas pela infelicidade. Centrado num elenco que dá verdadeiro show – em especial Suely Franco, no papel da dona-de-casa aprisionada na sua vidinha sem tempero, e Daniel Filho, como o patriarca opressor e derrotado que, no dia do aniversário, decide fazer um ajuste de contas com seus entes, passando um rolo compressor sobre cada um deles –, o filme traz à tona os piores sentimentos que podem reger uma família. Ao escrever Intensa magia, Maria Adelaide diz ter feito uma espécie de homenagem póstuma ao pai, um industrial português, que imigrou para o Brasil no início dos anos 1950. “Meu pai era um grande personagem, contraditório como todos os bons personagens, exibindo socialmente a sua máscara mais agradável e reservando para a família o que achava que ela merecia.”

Crença – A peça é resultado de um mergulho interior em consequência da
perda de amigos e de problemas de saúde. Maria Adelaide foi portadora de
câncer – teve alta médica em 2003 – e superou os maus momentos escrevendo. Na mesma fase intensificou sua crença no catolicismo a ponto de hoje vivenciar, nas suas palavras, verdadeiros êxtases religiosos. “Esta sensação que se chama felicidade, uma felicidade extática, que é breve, eu já tive várias vezes nos últimos anos.” Pela sua descrição, a enlevação se manifesta de formas diferentes. Já sucedeu, por exemplo, nos jardins pequenos de Versalhes, nas ruínas gregas do teatro de Epidauro ou na região italiana da Sicília. Uma das experiências mais recentes aconteceu quando visitava a igreja Santa Maria Maggiore, em Roma. Como o local estava em reformas, Maria Adelaide foi fazer suas preces numa das capelas. Lá encontrou um padre filipino que ia começar a rezar uma missa, com o detalhe de que só estavam presentes ela e mais um casal, que se retirou. “O padre fez a missa só para mim. Foi o momento religioso mais forte da minha vida. Depois da missa, nós nos abraçamos e…” Neste instante, Maria Adelaide interrompe a conversa e começa a chorar copiosamente. Vem à lembrança a cura da doença e como saiu dela fortificada. “O sofrimento pode ser altamente nutritivo, não como masoquismo porque tenho grande prazer nas pequenas coisas da vida. Mas, quando ele vem, eu encaro sem máscaras.”

Plural na maneira de dissecar os meandros humanos, é com esta objetividade que a dramaturga de 62 anos cultiva vários textos de aparência leve e sofisticada, mas de efeito devastador. Exatamente como um dry Martini, bebida que ela adora e, por consequência, levou um crítico a comparar sua obra com o drinque. Autora de 15 peças, oito livros, quatro minisséries, uma novela e colaboração em outras cinco, a portuguesa natural do Porto, que adotou a capital paulista como a sua cidade desde que chegou no Brasil com 12 anos, tem seu trabalho sustentado basicamente nos diálogos. Os críticos dizem que ela é mestra neste quesito. Até no monólogo Mademoiselle Chanel – que conta com a direção precisa de Jorge Takla – brotam diálogos curtos e viris imaginados para uma personalidade ferina que no palco pergunta e responde a si mesma e na vida real tem no currículo frases do tipo “uma mulher sem olhar masculino está perdida”.

Inquietações – Assim que ela gosta de trazer à tona as inquietações e desesperos de suas personagens, muitas vezes se identificando com elas, a exemplo de Coco Chanel, que teve uma infância magoada. A autora conta que também viveu uma infância infeliz. Aos cinco anos se refugiava do mundo na literatura. Com seis perpetrou o primeiro poema e estava matriculada na escola, numa idade não aconselhada para as crianças do Portugal de então. Já no Brasil, primeiro trabalhando como operária numa fábrica de camisas, depois como escriturária, bancária e jornalista não abandonou a leitura. Hoje, quando escreve sobre gente conhecida se assume uma total voyeur. “Mas o que me interessa nas persona-lidades é o que elas têm de fragilidade, o que as despoja da sua liturgia, os aspectos submersos. Gosto de despir os ícones. Estou interessada em aproximá-los do cidadão comum.”

Material humano não lhe falta. Maria Adelaide Almeida Santos do Amaral é frequentadora assídua de estréias teatrais, de vernissages e de festas da mondanité, onde circula totalmente à vontade. “Não tenho ilusões, nem deslumbramento”, afirma. Festejada por diretores, atores e intelectuais, ela é uma unanimidade entre eles. Marília Pêra não mede elogios. “É uma autora muito talentosa, excepcional pesquisadora. O sucesso de Mademoiselle Chanel deve-se à direção e iluminação do Jorge Takla, à minha interpretação, mas principalmente à precisão histórica do texto da Maria Adelaide.” O amigo e também autor Alcides Nogueira vai na mesma trilha. “Além do imenso talento, ela é refinada. É uma profissional incansável, muito rigorosa e, como pessoa, é capaz de grandes afagos.” Mas não venham perturbá-la, avisam os mais íntimos. Maria Adelaide tem pavio curto. Em compensação, contam os mesmos, depois da espetada pede desculpas sem o menor problema.

Dona de preferências refletidas no seu trabalho, a autora da minissérie A casa
das sete mulheres
passou anos lendo Marcel Proust e Stendhal. Ouve de Maysa e Altemar Dutra a Michael Feinstein e música barroca. Adora os filmes de Alain Resnais, Federico Fellini e Woody Allen e se delicia com as peças de Edward
Albee. Separada do primeiro marido, mãe de Rodrigo, 35 anos, e Guilherme, 32, e avó de Ana Luisa, dois anos, e Pedro, dois meses e meio, Maria Adelaide não quis se casar novamente. Preferiu curtir a vida num espaçoso apartamento no bairro nobre de Higienópolis, zona central de São Paulo, dividindo a companhia com os gatos Bibelô e Gabriel. É lá que montou seu pequeno escritório onde agora começará uma nova maratona de leituras para escrever uma minissérie sobre Juscelino Kubitschek, prevista para ir ao ar na Rede Globo em 2006. O Presidente Bossa Nova está em boas mãos.