Andei de cama, vitimado por uma gripe violenta, aninhado entre os lençóis, lutando contra a febre que teimava em aparecer para uma visita, sem falta, à hora do Angelus. O quarto na penumbra, a televisão ligada e eu a tudo assistindo aos pedaços, entre cochilos febris e lembranças antigas, buscando o ar com o peito arfante, como um poeta romântico que tenha se esquecido de morrer na juventude. Mas lembro de um documentário, no qual Maya Angelou, poeta, ativista e pensadora americana, que lutou ao lado de Martin Luther King pelos direitos civis dos negros naquele país, contava um pouco de sua história. Maya foi violentada pelo namorado da mãe antes de completar dez anos e denunciou o estupro. O homem foi preso, mas solto logo em seguida. Poucos dias após sua libertação, foi encontrado morto por espancamento. Depois do incidente, a menina ficou muda por cinco anos, porque sabia que um homem tinha morrido por causa de seu testemunho. A noção da importância do verbo chegou-lhe de maneira torta, mas não a impediu de respeitar a palavra de maneira absoluta nos anos vindouros. Embalado pelas palavras dela, eu adormeci.

Mais tarde, quando os lençóis já tinham sido trocados, assisti a um trecho de um documentário sobre os participantes do movimento sindical, que colocou nosso presidente em foco e, mesmo com a febre voltando a subir, ao ouvir os discursos de Lula, no início de sua trajetória, voltei a lembrar de Maya e da importância que aquela mulher passou a dar a cada palavra, mesmo depois da notoriedade bater-lhe à porta. Eu já escrevi sobre a euforia que tomou conta de todos nós quando Lula foi eleito pela primeira vez. Estava em São Paulo, com um grupo de amigos, e caminhamos até à avenida Paulista para ver a festa do povo. Naquela noite, eu lembro bem, achamos que um vento novo sopraria para longe os nossos rancores e decepções, mas quase uma década depois, assistindo ao lamentável desempenho do Senado e o apoio do presidente a uma estrutura corrupta e decadente, nossos corações andam ainda mais assustados e descrentes. É a tal da irresponsabilidade com a palavra de que Maya falava. Por fim, a febre subiu e eu, pensando nas implicações do poder, acabei adormecendo, torcendo pelos suores que a levariam embora.

Acordei no meio da madrugada. Troquei novamente os lençóis e a camiseta ensopada. Na televisão, Melina Mercouri dava vida à prostituta Ilya, do clássico de Jules Dassin “Nunca aos Domingos”. No filme, Ilya gosta de ir assistir às tragédias, mas entende os mitos de forma muito particular, sem aceitar o destino trágico das personagens. Assim, Medeia, segundo ela, não assassina os filhos, mas termina reconciliando-se com Jasão e partem todos para umas férias no litoral. O fato é comprovado quando a atriz que faz o papel agradece os aplausos junto às crianças que desempenharam seus filhos na função. Ali estão eles, juntos, mãos dadas. O mesmo acontece com Édipo e com os outros protagonistas das tragédias gregas. Todos terminam numa grande festa no litoral que, para Ilya, é o suprassumo da felicidade humana.

Só voltei a dormir quando o dia vinha clareando. Tive um sono agitado que atravessou metade da manhã e nele o herói honrava suas palavras e terminávamos confiantes no futuro, numa festa no litoral. A mesma euforia, a mesma esperança, o mesmo sentimento de que ainda vale a pena. Inclusive aos domingos.