No auge da cultura árabe, um homem com mais de 50 anos pede em casamento uma menina de nove. Mesmo contra a vontade dela, os dois se unem e passam a enfrentar as intrigas dos invejosos e as acusações de uma religião que acabava de nascer – o islamismo. Esse é o ponto de partida do livro "A Joia de Medina" (Editora Record), da jornalista americana Sherry Jones. Ele já seria incomum, mas a importância dos protagonistas torna a trama ainda mais excepcional.

O homem em questão é ninguém menos que o profeta Maomé (570-632), fundador do Islã. A menina escolhida para ser sua esposa é A’isha, que se casou apaixonada por outro pretendente, mas com o tempo passou a amá-lo. Por sua coragem, tornou-se excelente guerreira e também conselheira do profeta. Foi por meio de seus relatos que a jornalista resolveu contar esse momento marcante da história da humanidade – uma escolha que lhe rendeu a reação negativa de seguidores do islamismo, para quem as mulheres devem ocupar posição secundária.

Também as editoras se afastavam como o diabo foge da cruz. Exemplo: depois de firmar um contrato de US$ 100 mil, a conceituada editora americana Random House recusou-se a publicar o livro. Na Inglaterra, outra casa editorial teve o prédio atacado após anunciar que lançaria a obra. "A Joia de Medina" acabou indo para as estantes sob a chancela da Beaufort Books. Tornou-se best-seller e chega agora às livrarias brasileiras.

Para os radicais muçulmanos, há diversos pontos delicados no livro: eles não aceitam o fato de a criação do Islã ser contada por uma mulher nem a afirmação de que uma das esposas de Maomé estava desejando outro homem. Mas talvez o principal motivo de protesto tenham sido as passagens em que A’isha descreve seus jogos sensuais com o profeta: "Fui à porta receber Maomé usando apenas minha roupa de dormir, sem nada por baixo, a não ser a pele.

Quando ele entrasse, eu deixaria a túnica cair ao chão e ficaria em pé diante dele, completamente nua." Convidada pela Random House para fazer uma avaliação do romance, Denise Spellberg, professora de história do Oriente Médio na Universidade do Texas, o reprovou de forma taxativa: "Não se pode pegar a história sagrada e transformá- la em pornografia soft."

Os defensores da obra também protestaram e a polêmica teve a participação de Salman Rushdie, o escritor anglo-indiano que passou a ser perseguido por religiosos iranianos depois de escrever "Os Versos Satânicos". Ele declarou: "É censura causada pelo medo e cria um precedente muito ruim." De sua parte, a Random House não nega o temor de represálias. Ela justificou-se dizendo que não queria incitar "atos de violência de segmentos radicais" e se disse preocupada com a segurança da autora, dos empregados, dos vendedores e de todos os envolvidos no processo de distribuição desse romance histórico.

A professora Denise afirmou que o texto faz piada com os muçulmanos e a trajetória de seu povo: "Essa deliberada má interpretação da história tornou-se problemática." Reação diferente – e, sobretudo, insuspeita – teve o editor-chefe do site islâmico altmuslim.com, Shahed Amanullah. "A melhor resposta a um discurso livre é simplesmente outro discurso."

"A Joia de Medina" é um livro bem escrito, que desde a primeira página consegue envolver o leitor e transportá-lo no tempo até a região onde nasceu o Islã. Apesar do fôlego jornalístico impresso à saga de A’isha, a autora não se furta a um tom lírico que, geralmente, está ausente em obras do gênero. Ela começou a pesquisa em 2002, devido à quantidade de reportagens sobre os muçulmanos publicadas depois dos ataques terroristas do dia 11 de setembro.

Acabou se impressionando com a submissão das mulheres nos países islâmicos. A biografia de A’isha, uma das 12 mulheres e concubinas de Maomé, é simbólica, já que ela enfrentou suas limitações, foi de espada em punho ao campo de batalha enfrentar os inimigos e chegou a ser conhecida como Mãe dos Pobres. Numa das raras ilustrações que retratam Maomé com suas esposas, A’isha aparece em um plano inferior a Fátima, a filha de Maomé com sua primeira mulher, Khadija.

O curioso é que tanto ela como o profeta estão com o rosto coberto por véus – ao mostrá-los assim, os artistas muçulmanos evitavam que a representação do criador do islamismo aparecesse inexata ou sacrílega. "É grande a força dessa mulher – a inteligência e a coragem. Além disso, o seu senso de humor me atraiu imediatamente", disse a autora em uma de suas entrevistas. As cenas de alcova talvez sejam excessivas tratando-se de uma narrativa com tantos outros atrativos, mas diante da opressão feminina da época compreende-se a sua opção. Trata-se daquele tipo de livro em que é inevitável a solidariedade do autor para com os personagens.