Quatro milhões e meio de cidadãos legitimaram nas urnas o programa do presidente Carlos Mesa sobre o destino do gás na Bolívia. E, automaticamente, impediram que ele descesse a rampa ou fosse drasticamente destronado, como aconteceu com seu antecessor Gonzalo Sánchez de Lozada, que, em meio a uma insurreição em outubro do ano passado, teve que deixar às pressas o Palácio Quemado (sede do governo). Apesar do “sim” às propostas do governo, o plebiscito do domingo 18 não resolve por si só a debilidade socioeconômica do país. A política energética é apenas uma parte do imbróglio boliviano, mas, se conduzida corretamente, poderá ser a saída para as necessárias mudanças. Apesar de a Bolívia ser detentora da segunda maior reserva da América Latina (a primeira é a Venezuela), com 54,8 trilhões de pés cúbicos, o país é um dos mais pobres e desiguais do continente. As populações indígenas quíchua e aimarás (que serviram de escravos durante anos a fio para os colonizadores espanhóis em minas de exploração) até hoje não se vêem representadas na mais alta esfera da Bolívia.

“A inclusão social é uma das principais demandas da população e, por isso, temos de estabelecer um mecanismo em que possamos ter um novo desenho do país. Temos problemas de integração social. A representação política privilegia muito a elite branca, e não as raízes profundas da Bolívia. A Bolívia vive um apartheid e estamos em plena discussão sobre o grande sentido da cidadania”, afirmou a ISTOÉ o coordenador do referendo e do projeto de uma Assembléia Constituinte, Ricardo Paz Ballivian. Um dos principais debates hoje na Bolívia é quanto ao direito e a autonomia da terra. “Há uma tendência nos setores indígenas de dizer que cabe ao indivíduo ou à comunidade, não ao Estado, o direito de explorar o subsolo”, afirma Paz.

O grande desafio imediato é a convocatória para uma Assembléia Constituinte que dê conta dos aspectos estruturais da Bolívia, com a elaboração de um pacto social político e econômico capaz de promover uma reforma profunda. Essa é uma das maiores demandas dos movimentos sociais. “Queremos ter uma nova Constituição até 2006. Há um programa que discute a estratégia governamental com seminários e fóruns. O Congresso e o Executivo trabalham conjuntamente para que, antes do final deste ano, já esteja estabelecido o número de parlamentares e como eles serão eleitos”, afirma o coordenador.

Essa redemocratização do país acontece em meio a uma verdadeira crise política, com o desmoronamento da maioria dos partidos. Portanto, apesar do voto de confiança de 80% da população, Carlos Mesa, um presidente sem partido, ainda pisa em ovos. Ele terá que negociar passo a passo seus projetos com os diferentes setores da sociedade boliviana e ainda driblar as empresas petrolíferas que trazem divisas para o país. Na esfera política, os governistas negociam com cada deputado separadamente o apoio à Lei dos Hidrocarbonetos a ser votada pelo Congresso no dia 9 de agosto. Os parlamentares que apóiam Mesa são os sem-partido ou os chamados “transversais”. O que está em jogo é a recuperação do controle do Estado sobre a produção privada do combustível e a nacionalização das reservas de gás. Hoje, 20 multinacionais controlam a boca do poço das reservas. A Petrobras é a principal empresa estrangeira a explorar o gás natural boliviano, com um total de US$ 1,5 bilhão de investimentos e 800 funcionários. “Os negócios de gás e energia são de longo prazo e sempre há o risco de mudança, ainda que os investidores queiram regras estáveis”, disse o gerente da Petrobras, Joaquim de Melo.

A nova medida prevê aumento de impostos para as empresas internacionais que já pagam 18% de tributos ao governo. “A questão dos impostos deve ser uma das mais difíceis na mesa de negociações. Outro tema importante são os contratos vigentes com as empresas internacionais. O que fazer com eles?”, indagou Paz. O governo já acenou que o referendo não implicará a revisão dos 78 contratos de concessão por 40 anos firmados pelo deposto presidente Sánchez de Lozada. Ou seja, se recusa a revê-los. “Na medida em que as novas regras proponham uma viabilidade financeira-econômica, com um prazo razoável, as companhias petrolíferas vão aceitar. Claro que se a proposta for uma loucura, como algo semelhante a um confisco, elas vão recusar.” Com o plebiscito, o governo recebeu luz verde às exportações. A Bolívia acaba de assinar com a Argentina a exploração de gás para os próximos 20 anos, e com o Peru deve fazer em breve um novo acordo.

Para atender à demanda doméstica, iniciou-se um projeto de ampliação de tubulações por todo o país. Esse programa começou no ano passado na cidade de El Alto, uma das mais pobres do país e foco de tensões entre as lideranças indígenas e partidários do governo. A idéia é levar o combustível para 400 mil famílias até 2005. Os investimentos provêm da Espanha e está calculado em cerca de US$ 50 milhões. Por enquanto, os bolivianos estão apostando no presidente. Quanto tempo durará o fôlego de Mesa, isso ninguém sabe.