PILOTO 1 E PILOTO 2 SÃO OS DOIS COMANDANTES DO TRÁGICO VÔO 3054

 

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18:18:24-5 A tripulação passa informação aos passageiros, provavelmente no circuito aberto de som para avisar do pouso em Congonhas

18:18:53.4 Som de um assovio/apito

18:20:25-0 Comissário de bordo solicita entrada na cabine

18:20:28-0 Um piloto pergunta: Tudo OK?

18:20:29-0 Comissária diz que está tudo bem e pergunta onde vão pousar -Eu acabei de informar, diz um dos pilotos
-Não escutei, desculpe, diz a comissária -Mas ela (certamente outra comissária) escutou, Congonhas
-É Congonhas? Que ótimo. Ela deve ter ouvido, obrigada.

18:43:04-0
PILOTO 1
– Lembre-se, nós só temos um reversor.
PILOTO 2 – Sim, só o esquerdo

OS PILOTOS COMEÇAM A CHECAGEM GERAL DOS PROCEDIMENTOS DE POUSO

18:43:52-0 TORRE DE CONGONHAS
– TAM 3054, reduza a velocidade para aproximação e chame a torre na frequência 127,15. Boa tarde. (Torre e pilotos trocam informações . O avião está a 6 mil pés. Os pilotos fazem o check list final e um dos pilotos diz que estão sobre Diadema.)
PILOTO 1 – TAM em aproximação final a duas milhas de distância. Poderia confirmar condições.
TORRE – Está molhada e está escorregadia. Eu avisarei quando a 35 L (pista principal de Congonhas) estiver liberada.
TORRE – TAM 3054. 35L. Autorizado para pousar. A pista está molhada e escorregadia. O vento é 330 a 8 nós.
PILOTO 2 – 330 a 8 é o vento.
PILOTO 1 – Checado.
TORRE – 3054? TORRE – 3054, câmbio.
PILOTO 1 – O pouso está autorizado?
PILOTO 2 – Pouso autorizado

CHECAGEM DOS PROCEDIMENTOS DE DESCIDA

18:48:21-0 Computador de bordo dispara um alarme: -Retard, retard

18:48:24-0 Microfone na cabine capta som da alavanca do manete sendo movida e ouve-se barulho de aceleração da turbina

18:48:25-0 Novo alarme do computador

18:48:26-0 Som de toque na pista
PILOTO 2 – Reversor número um apenas.

18:48:29-0
PILOTO 2 – Nada dos spoilers
PILOTO 1 – Aiiii
PILOTO 1 – Olha isso
PILOTO 2 – Desacelera, desacelera
PILOTO 1 – Não dá, não dá
PILOTO 1– Ai, meu Deus… ai, meu Deus
PILOTO 2 – Vai, vai, vai… vira, vira, vira…

18:48:44-0
PILOTO 2 – Vira, vira pra… não, vira, vira

18:48:45-0 Sistema da cabine registra sons de colisão

18:48:49-0 0 Voz masculina – Ah, não. (Pausa nos sons de colisão.)

18:48:50-0 Som de gritos, voz feminina. Novo som de colisão

 

 

 

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Com o reverso da turbina direita travado, os pilotos Kleyber Lima, 14.744 horas de vôo (sendo 2.236 em A320), e Henrique Stefanini Di Sacco, 14.486 horas de vôo (258 em A320), não erraram quando o Airbus prefixo PR-MBK da TAM pousou às 16h40 do dia 17 de julho, no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre. Obtidas por ISTOÉ, as informações da caixa-preta com os dados do avião (Flight Data Record, ou FDR, em inglês) revelam que, do ponto de vista dos 12 padrões técnicos gravados na FDR, os pilotos fizeram uma aterrissagem perfeita e suave no Salgado Filho. Por que então, ao pousar em Congonhas, às 18 horas, 48 minutos e 24 segundos, eles iriam vacilar no ajuste do manete, espécie de acelerador, dando início aos 27 segundos de agonia que terminaram no maior desastre aéreo do Brasil?

Fazia apenas dois meses que o comandante Lima tinha sido submetido às 54 horas do chamado "check profissional" – a avaliação semestral, obrigatória a todos os pilotos, na qual eles passam 40 horas em sala de aula, atualizando os conhecimentos técnicos, e outras 14 no simulador de vôo para testar o domínio da aeronave e a perícia em situações de emergência. Di Sacco foi aprovado no dia 5 de junho, menos de um mês e meio antes do acidente.

Ambos, portanto, estavam plenamente capacitados quando decolaram de Porto Alegre com um avião pesando 67,646 toneladas, lotado com 187 passageiros e 9,328 toneladas de querosene. Às 18h43, ao fazer a aproximação para aterrissar em Congonhas, Lima e Di Sacco demonstraram total conhecimento das dificuldades que iriam enfrentar naquela noite chuvosa em São Paulo.

– Lembre-se, nós só temos um reversor, diz um deles.
– Sim, só o esquerdo, responde o outro.

Exatos 48 segundos depois, eles perguntaram aos controladores de vôo como estava a condição da pista recém-reformada de Congonhas. "Está molhada e está escorregadia", foi a resposta da torre.

As informações da caixa-preta que registra o comportamento do PR-MBK indicam que o manete direito, que deveria estar na posição de ponto morto (idle, no original), aterrissou fora do lugar determinado. Ele estava a 23 graus do ponto idle e, à semelhança do que aconteceu com outros Airbus, em Taiwan e nas Filipinas (leia quadro à pág 32), o sofisticado sistema de cinco computadores do avião entendeu que, nesse caso, o piloto estaria tentando fazer uma nova decolagem (arremeter) e manteve a aceleração.

 

 

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 Depois do acidente de Taiwan, a Airbus criou um equipamento que acende uma luz vermelha e faz soar um apito intermitente sempre que o piloto erra a posição correta do manete. Os novos modelos já são montados com o novo alarme, mas para o PR-MBK, fabricado em 1988, a TAM não comprou o sistema auxiliar porque ele fazia parte dos equipamentos "desejáveis" e não "obrigatórios" ou "recomendados". Com o velho defeito em curso, o computador levou três segundos para fazer a leitura do erro e, portanto, o A320 tocou a pista a 252 quilômetros por hora (pouco acima do ideal, de até 240 km/h) e não parou como deveria.

Numa leitura apressada, é fácil culpar o piloto pelo erro. Contudo, ao se sobrepor as indicações da caixa de dados aos diálogos registrados na caixapreta de voz (Voice Data Record), o que permite reconstituir a ação do comandante com a reação da máquina, verifica- se que sobram dúvidas em relação ao comportamento do Airbus.

Pode-se então relevar a experiência da dupla que estava na cabine do PR-MBK e mesmo o fato de que todos os pilotos sempre puxam os dois manetes simultaneamente. Suponha-se que os dois foram puxados equivocadamente um pouco acima do ponto morto – e depois apenas o esquerdo foi colocado na posição de reverso. Ainda assim o piloto teria tocado no manete e alguma desaceleração deveria ter sido registrada na caixa-preta. Mas aí surge o primeiro evento ainda não esclarecido sobre o comportamento do Airbus: os dados acusam potência uniforme na turbina direita, como se o avião ainda estivesse em vôo. "Pelo computador, o piloto simplesmente não tocou no manete", diz um dos especialistas que analisaram os dados a pedido de ISTOÉ. "E isso é quase impossível de acontecer."

Quando um Airbus está para tocar a pista, o sistema que alerta para o perigo de proximidade com o solo, o GPWS (sigla para Ground Proximity Warning System, em inglês), pronuncia, com a voz metálica das gravações, a palavra "retard", avisando para desacelerar o avião. No caso do PR-MBK, foram três alertas em quatro segundos. E, ao som do primeiro alerta, a caixa-preta registra que o manete esquerdo foi reduzido para ponto morto. Os dados da FDR, contudo, indicam que isso não aconteceu no manete direito. "É uma linha reta, sem nenhuma variação", diz um dos peritos ouvidos por ISTOÉ. "É praticamente improvável, num intervalo de 27 segundos (do primeiro sinal de que algo estava errado até o choque com o prédio), que os pilotos, experientes, não tenham nem sequer mexido justamente no manete do motor que insistia em não desacelerar", afirma outro perito. A caixa com os dois manetes, principal peça que poderia ajudar a resolver parte do mistério, permanecia desaparecida nos destroços até a sexta-feira 3.

Às 18 horas, 48 minutos e 26 segundos, o Airbus chegou ao solo com diferença de um segundo entre as rodas traseiras e mais dois segundos para o nariz do avião. O Flight Data Recorder revela que houve uma junção de comando no momento em que a aeronave tocou na pista. No A320, a direção do avião é definida por um sidestick (uma alavanca semelhante ao controle dos videogames). Há um do lado do piloto e outro do lado do co-piloto. Normalmente, quando um está operando, o outro fica inativo. Os diagramas mostram que, desde o momento em que foi desativado o piloto automático para o pouso, era o sidestick do lado esquerdo que estava em operação. Imediatamente após o toque da aeronave no solo, pelos cinco segundos consecutivos, os dois sidesticks foram usados. "Pode-se dizer que eles praticamente pousaram a quatro mãos, o que não é comum", diz um experiente piloto. Segundo os documentos da TAM encaminhados ao processo 682 que está sendo investigado na 27ª Delegacia de Polícia de São Paulo, quem ocupava o lado esquerdo da cabine de comando era o comandante Kleyber Lima.

No instante em que o Airbus tocou a pista, o piloto indicado com o número 2 nos documentos da caixa de voz, avisou:

– Reverso número um apenas, disse ele, que logo se deu conta do primeiro grave problema.
– Sem spoilers, constatou.
– Aaiii!, foi o comentário do outro.

Os spoilers são os prolongamentos maleáveis da asa, abertos na hora do pouso para aumentar a resistência do ar e a aderência do avião ao solo. É chamado de freio aerodinâmico e, na escala dos vários sistemas que auxiliam na frenagem de um jato, é mais importante que o reverso, mas menos fundamental que o freio mecânico. No caso do vôo 3054, os spoilers se mantiveram estáticos durante todo o procedimento de aterrissagem. Tudo indica que, por conta da aceleração incontida da turbina direita, o computador não entendeu que era o caso de disparar os spoilers, que em condições normais entram em operação automaticamente, tão logo o avião toca no solo.

Sem spoilers, com uma turbina acelerando e outra parando, o Airbus correu pela pista já puxando para a esquerda, o que fez com que o piloto tentasse alinhar a posição da aeronave. O gráfico que registra o movimento do pedal que controla o leme de direção e o trem de pouso dianteiro indica uma correção para a direita. Por cinco vezes, o pedal do leme é pressionado até próximo do máximo.

Segundo um brigadeiro que acompanha as investigações, assessor direto do comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, no instante seguinte, com o avião correndo a 252 km/h, a potência do motor do Airbus subiu para 98%. É potência de cruzeiro.

– Olha isso, comentou o piloto identificado com o número 1.
– Desacelera, desacelera, pede o outro.
– Não consigo, não consigo, responde o primeiro.

Na versão apresentada à CPI da Câmara, os diálogos vieram dos EUA já vertidos para o inglês. O que o assessor de Saito informa ser "não consigo" apareceu aos parlamentares como "it can’t", traduzido na ocasião como "não dá". Para a Aeronáutica, a análise combinada dos dados com as vozes indica que os pilotos fizeram tudo para parar a aeronave. Ao detectar a potência máxima ("olha isso"), um deles tentou puxar de novo o manete e abrir os spoilers ("desacelera, desacelera"). Mas a alavanca estava travada ("não consigo, não consigo"). Se, de fato, o manete travou, são muitas as hipóteses investigadas para explicar o problema. "Uma pane no sensor do manete não deve ser descartada", diz um especialista ouvido por ISTOÉ.

Outra possibilidade é que tenha havido uma falha no computador de bordo, erro de software. Com seus cinco computadores, de fabricantes diferentes, o Airbus é ultra-automatizado. Os peritos, agora, devem passar muito tempo testando o software para ver se ele tem falhas. Até hipóteses mais esdrúxulas, como a possibilidade de alguma peça de metal, como um clipe, ter obstruído o movimento do manete, é considerado.

Às 18 horas, 48 minutos e 35 segundos, o piloto pisa fundo no pedal do freio, na primeira tentativa de segurar o avião utilizando os freios hidráulicos do trem de pouso. O pedal de freio da direita, exatamente o do lado da turbina que continuava acelerando, foi mantido por 13 segundos sob pressão máxima. Durante um período, que coincide com os segundos em que o freio estava em seu máximo, por algum motivo o sistema de spoilers aparece como "desarmado".

Os dados do FDR registram que nesses 15 segundos finais, quando o avião corre sem obedecer aos comandos, quem assume o controle é o sidestick do lado direito, onde estaria Di Sacco. No comando de um avião que beirava o peso máximo autorizado para pouso em Congonhas, com apenas um reverso aberto, sem spoilers e com uma turbina acelerando-o para a frente, ele ainda conseguiu reduzir a velocidade para 175 km/h. É aí que se colocam algumas questões sobre o programa de computador do Airbus: como pode um avião contrariar violentamente os comandos do piloto? Se, por alguma falha mínima na posição ideal do manete, ele mantém a aceleração máxima, então por que o A320 não tem um dispositivo capaz de reinterpretar o desejo de parar o avião, levando em conta que os sensores indicavam que a aeronave estava no solo, com um reverso aberto e o freio mecânico pressionado ao máximo por mais de 10 segundos?

A pista molhada, escorregadia e sem área de escape foi ficando cada vez mais curta e às 18h48’45" o vôo 3054 perdeu praticamente todas as oportunidades de terminar apenas como um acidente.

– Oh, meu Deus… oh, meu Deus, diz o piloto 1.
– Vai, vai, vai, vira, vira, vira. Vira, vira pra… não, vira, vira, diz o outro.

Especialistas ouvidos por ISTOÉ disseram que, aos pilotos, havia apenas um último recurso diante de um avião desgovernado: cortar o combustível. Mas os dados do FDR mostram que isso não foi tentado. Como a tragédia na aviação não se faz de apenas uma causa, às 18h48’50" as caixas-pretas emudeceram: o PR-MBK não tinha o sistema de alarme de falha na posição do manete, o spoiler não abriu, o computador ignorou o freio mecânico e não acionou a frenagem automática, a pista curta não ofereceu tempo para outra solução nem área de escape e o A320 estava carregado de combustível num aeroporto cercado de prédios por todos os lados. A maior tragédia da aviação brasileira tem erros de sobra para que um piloto responda sozinho por eles.

Colaboraram: Carina Rabelo e Hugo Studart