Cansado de ver todo dia a desordem de sua cidade nos jornais? O remédio pode ser uma boa mudança de ares, como a biografia de William Shakespeare (1564-1616) pelo americano Bill Bryson (Companhia das Letras, tradução de José Rubens Siqueira). Seu título: "O Mundo É um Palco". Qualquer brasileiro se sentirá em casa, diante do que Bryson conta sobre a Londres que no século XVI fez a cabeça do bardo.

Autor prolífico de livros que misturam pesquisas pesadas com textos divertidos, ele resume em meia dúzia de páginas o que era a vida diária da capital inglesa na era elizabetana, uma genuína metrópole europeia, maior que Paris ou Madri, cercada por um cenário que hoje parece marca registrada dos trópicos violentos.

As ruas eram tão perigosas que Bryson cita pelo menos dez termos da época para designar modalidades técnicas de roubo, assaltos e vigarices que disputavam com os ratos e as febres as ruas imundas. A noite caía sobre os londrinos com toque de recolher. No inverno, isso podia significar o meio da tarde. Do outro lado do Tâmisa, cabeças de criminosos acolhiam os forasteiros, no alto de postes.

Era, para os padrões atuais, uma cidade pequena. Podia-se cruzá-la "de ponta a ponta em não muito mais de uma hora". Mas, apesar dos pesares, sendo "tão mortal e atraente", crescia tão depressa que, naquele século, veria sua população quadruplicar. Inchando sem controle, transbordou os muros que ainda a mantinham confinada em seu molde medieval, derramando-se para cima de um campo que da noite para o dia ia deixando de ser rural, sem com isso se tornar, de pleno direito, urbano.

Da cinta original sobrou hoje pouco mais que o nome de bairros que se chamam "portas" e a City, o centro histórico onde acabaram se encastelando os banqueiros. No tempo de Shakespeare, os muros estavam de pé. Mas seu contorno tornara-se indiscernível das casas que se encostavam em suas pedras, como paredes.

Do lado de fora estendiam-se os subúrbios, onde cada um podia fazer o que lhe desse na telha – inclusive, assentando telhas em locais proibidos. "As autoridades continuamente expediam decretos determinando que novas construções não poderiam se erguer num raio de cinco quilômetros dos muros. E o fato de que esses decretos tinham que ser renovados com frequência mostra que eles não eram muito levados em conta", diz Bryson.

O resultado é que "Londres estava cercada de favelas". Os esgotos corriam ao ar livre. A catedral de São Paulo servia de pórtico em dias de chuva, de campo de pelada para crianças, de abrigo para mendigos e de banheiro público para os necessitados, inclusive nos horários de culto.

Bryson faz o possível para reconstituir o espanto do jovem Shakespeare, recém-saído do ambiente provinciano de Stratford-upon-Avon. Em Londres, "um único teatro podia conter mais gente do que toda a sua cidade natal". Os palcos se multiplicavam além dos muros, na "liberties" – terras de ninguém onde a dramaturgia inglesa prosperou na companhia de bordéis, prisões, paióis de pólvora, hospícios, fábricas de sabão, curtumes e outros ofícios suspeitos.

Em outras palavras, Shakespeare, segundo Bryson, chegou ao lugar certo na hora certa. O que deveria encher os brasileiros de esperança.