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O POETA Com Marly, a mulher, e Roseana, a primogênita: ele sente nele a dor que no fundo é da filha

Acompanhado de um casal de amigos, José Sarney descansava com a mulher na casa da família em Búzios, no litoral do Rio. Inesperadamente, colocou a mão sobre o abdômen e falou em voz alta. – Marly, estou sentindo uma coisa estranha aqui. Acho que a Roseana está com algum problema.

Um quarto de hora depois, o telefone tocou. Do Maranhão, a filha informava que estava com uma forte dor no intestino e iria a São Paulo para realizar exames médicos. Essa quase mítica relação umbilical entre os dois talvez só tenha correspondência na intimidade do clã com o governo, ou qualquer outra representação do poder público. A simbiose entre Sarney e Roseana resultou frequentemente na solução de desafios políticos, como na hora em que ele precisou fazer dela sua sucessora no Maranhão. Mas a interação familiar com o aparelho do Estado, se por cinco décadas serviu a três gerações dos Sarney, está, agora, na origem dos problemas que fustigam a biografia do presidente do Senado.

José Sarney paga hoje o preço de, ao contrário de outros oligarcas estaduais, não ter conseguido transferir, do público para o privado, a influência e o poder obtidos na política. Seu maior empreendimento é o Sistema Mirante de Comunicação, formado por uma rede regional de tevê (cuja operação começou quando ele era presidente), um jornal e 18 rádios, no qual a publicidade oficial responde por cerca de 20% do faturamento total.

Se fosse ele o dono privado do Maranhão, o PSDB dificilmente teria o que reclamar ao Conselho de Ética. As acusações contra Sarney estão carregadas nas tintas, mas todas têm a mesma base, o uso do que é público em benefício de suas relações particulares: servidores oficiais no memorial pessoal, recebimento de auxílio-moradia mesmo tendo casa em Brasília, um lugarzinho à custa do Legislativo para a viúva do ex-motorista morar, um emprego para a sobrinha na cota do gabinete de um senador amigo, um neto que, mesmo contratado por um grande banco, acabou por trabalhar em um contrato que tinha o Senado como cliente.

Quando se olha a história entende-se o porquê da reação da família à indignação coletiva. Roseana Sarney nasceu no ano em que o pai se candidatou a deputado federal pela primeira vez. A transição da infância para a adolescência do caçula José Sarney Filho, o Zequinha, se deu quando o pai era governador do Maranhão e, depois, senador. "Naquela época, os parlamentares podiam comprar terrenos subsidiados em Brasília, todos tinham carro oficial que também servia para levar crianças à escola ou ir ao supermercado e ninguém achava nada demais", diz um senador aliado dos Sarney. "Hoje não pode mais ter isso."

Para quem de fato nasceu e cresceu em palácios, a delimitação da nova fronteira é uma guinada nunca antes vista na história deste país. Três dos dez netos nasceram quando o avô era presidente da República. Todos os três filhos foram nomeados ou se elegeram para funções públicas. Com apenas 21 anos, Zequinha virou deputado estadual e hoje está no quinto mandato federal. Foi ministro do governo Fernando Henrique Cardoso. Roseana é governadora do Maranhão pela terceira vez. Mesmo Fernando, o irmão que toca os negócios de comunicação da família, foi, no início da vida profissional, presidente da Companhia Elétrica do Maranhão, quando ela era uma empresa estatal.

Mas, o que agora é apontado como vício, também pode ser virtude da família. No lugar do grande escândalo, o que existe é a construção a partir de pequenas denúncias de práticas antes toleradas e agora condenadas: o nepotismo, o apadrinhamento, o favorecimento, a norma legal de moral duvidosa. José Sarney é um político à moda antiga, que vê na atividade um jogo de ocupação de espaços, o que vulgarmente se chama de politicar.

Na vida comezinha do Congresso, na alta burocracia, entre os militares, na diplomacia, em tribunais, ninguém tem tantos amigos, promovidos, removidos e indicados quanto ele. São as referências a cada um desses protegidos que o transformam no líder de um clã que se estende além dos filhos e netos. "Esse aí é Sarney", ouve-se nos gabinetes de Brasília com a frequência dos despachos administrativos. Isso o faz merecedor de devotados amigos e reações emocionais.

Na velha definição de que na política só há vida longa para quem for equilibrado ou equilibrista, Sarney passou dos 50 anos de carreira porque sempre foi ambos. Para ficar apenas na história mais recente, era o ponderado presidente do PDS, o partido do governo militar, e virou o ponto de equilíbrio entre a dissidência oficial, a Frente Liberal, e a Nova República. Na Presidência, incitou a população contra os empresários quando o desabastecimento começou a corroer o Plano Cruzado e depois voltou aos empresários para pressionar uma Assembleia Constituinte perdulária, estatizante e que ainda podia lhe tirar um ano de mandato.

NOMEAR E PROMOVER Sarney é um político à moda antiga, que vê na atividade um jogo de ocupação de espaços

Sarney aparece muitas vezes no papel do tertius, a terceira via de um processo de radicalização, porque sabe criar a circunstância para assumi-lo. É isso que explica a crise de agora e sua sobrevivência. Ele foi o equilibrado tertius da disputa entre novas lideranças do PT e do PMDB – a gênese do terceiro turno que resultou na confusão de agora no Senado. E, na semana passada, quando o seu velho partido, o Pflhoje envernizado de DEM, pediu sua cabeça com o apoio do PT, ele sacou o tertius equilibrista, ameaçando colocar o maior partido do País e o próprio Senado numa chicana política que poderia matar a aspiração petista de eleger o sucessor de Lula. José Sarney é assim uma espécie de trapezista de si mesmo.

Na gangorra da política, ele usa a força de sua história num dos lados e, com ela, impulsiona o novo projeto que, na outra ponta, espera apenas a hora de lançar a biografia para um estágio um pouco mais acima. E, como qualquer trapezista, é no voo que se corre o risco de perder o equilíbrio.