Na quarta-feira 28, o diretor de Política Monetária do Banco Central, Luiz Augusto Candiota, pediu demissão após apresentar explicações não convincentes para as revelações feitas por ISTOÉ na última edição. De acordo com documentos oficiais da CPI do Banestado, o ex-diretor fez movimentações bancárias no Exterior sem declarar ao Fisco brasileiro e, nas transações, teria utilizado a estrutura montada por doleiros. A demissão de Candiota, decidida na sexta-feira 23 – quando a revista chegava às bancas –, depois de uma reunião de diretoria do BC, foi a estratégia encontrada pelo governo para blindar Henrique Meirelles na presidência do banco. Entregando a cabeça de Candiota, esperava-se desviar o foco da crise. Mas, dentro do próprio governo, no mercado e na área política, avalia-se que a tática corre o risco de fracassar. O motivo está nas contradições produzidas pelo próprio Meirelles na tentativa de explicar o roteiro de seu retorno ao Brasil. A despeito das justificativas dadas pelo presidente do BC, controvérsias fiscais e éticas continuam envolvendo o caso. A principal delas está documentada em uma entrevista publicada pelo jornal Folha de S. Paulo no dia 12 de janeiro de 2003, quando Meirelles ocupava há cinco dias a presidência do BC. Entre outros temas, o então correspondente do jornal em Washington, Márcio Aith, quis saber o motivo da saída de Meirelles do FleetBoston (banco resultante da fusão entre o Fleet Finantial Group e o BankBoston). Na época, circularam boatos de que ele deixara a direção mundial do grupo porque estaria desprestigiado. Na resposta, Meirelles historia e dá detalhes de quando e como voltou ao Brasil. Em duas oportunidades, diz que retornou em 2001 e continuou trabalhando para o banco aqui:

Folha: Qual é a relação entre sua saída do FleetBoston, em 2002, e a decisão
do banco de retirar de sua responsabilidade, em outubro de 2001, a chefia
da divisão corporativa?
Meirelles:
O banco não tirou nada de mim. Isso foi amplamente publicado em 2001. Filiei-me ao PSDB no dia 5 de outubro de 2001, um pouquinho antes dessas mudanças no banco a que você se refere. Aliás, as mudanças ocorreram por solicitação minha. Comuniquei ao conselho em setembro de 2001 que pretendia voltar para o Brasil, que estava avaliando a possibilidade de concorrer a um cargo público. As mudanças no banco vieram em outubro. Mudei-me para o Brasil, para São Paulo e, de lá, gerenciei as operações globais do banco.

Folha: A que o sr. atribui relatos nos EUA conflitantes a esse? Analistas de bancos e até funcionários do banco dizem que o sr. estava em baixa, que foi isolado por um grupo de executivos oriundos do Fleet Financial Group, entre os quais Eugene McQuade, atual número 2, e Jay Sarles, que o substituiu na divisão corporativa do banco e é o atual número 3 na hierarquia da instituição.
Meirelles:
As fofocas são produtos de toda fusão. Existem sempre especulações, falatórios. Não foi diferente no caso da fusão com o Fleet, em 1999. O BankBoston era um “patrician bank” (de tradição aristocrática), de atacado, juntando-se
a um banco de varejo, que começou no pequeno Estado de Rhode Island.
Minha situação sempre foi a mais confortável possível no banco. O CEO (principal executivo) do FleetBoston hoje é o Charles Gifford, meu amigo pessoal, que me levou para Boston em 1996. Se quisesse, eu poderia estar no banco agora, como sempre estive. Somos amigos há 20 anos. Aliás, ele não gostou da minha vinda para o Brasil em 2001.

Para o tributarista Ozires Lopes Filho a declaração de Meirelles é uma demonstração de que o presidente do BC voltou ao Brasil em 2001 para ficar. Ou seja, em definitivo. Trata-se de um imbróglio fiscal, mas, para o ex-secretário da Receita Federal, a questão avança sobre outro campo, o da ética. “A indagação fundamental é se ele tem credibilidade. Não tem. Se agem dessa forma nas finanças pessoais, o que ocorrerá quando tratam das finanças públicas?”, diz ele, referindo-se a Meirelles e a Candiota. Everardo Maciel, também ex-secretário da Receita Federal, ao examinar as informações de ISTOÉ, concluiu que há problemas a serem apurados: “A verdadeira amplitude desse assunto só pode ser esclarecida em um procedimento de fiscalização.” Articulista com colunas em dois dos maiores jornais do País, Elio Gaspari assinou artigo sob o título “Meirelles precisa sair do Banco Central”, no qual indaga: “Talvez fosse o caso de o Dr. Meirelles se perguntar qual país, civilizado ou não, tem um presidente de Banco Central com as suas características domiciliares, tributárias e patrimoniais?”, depois de citar vários problemas éticos que levaram à demissão de presidentes do BC pelo mundo afora. O economista Paulo Nogueira Batista Jr., ex-guru do PT, endossa o questionamento colocado por Gaspari e acrescenta que a discussão da autonomia do Banco Central, um projeto do governo Lula, deve ser repensada diante de polêmicas como a que envolve hoje Meirelles.

Na avaliação de quatro especialistas consultados por ISTOÉ, se Meirelles, como informou à Folha de S.Paulo, veio para o Brasil em 2001, ele deveria apresentar declaração de rendimentos relativa aos últimos meses de 2001. Além disso, sua declaração referente ao ano seguinte deveria incluir o período entre janeiro e maio. As afirmações de Meirelles mostram que, antes de se filiar ao PSDB, já não tinha dúvidas de que voltaria a morar no Brasil a partir de outubro, mas preferiu adiar até junho do ano seguinte a transferência de seu domicílio fiscal. Além de dizer coisas diferentes ao Fisco e aos jornais, o presidente do BC não explicou, durante a última semana, por que tentou vender aos eleitores que é mais pobre do que se declara ao Leão. Na nota à imprensa divulgada na sexta-feira 23, ele afirma que “as datas, finalidades e critérios próprios dessas declarações eram e são diferentes, fazendo os conteúdos aparentarem diferenças, mas elas são regulares e consistentes.”

Insatisfação – O Ministério Público, que investiga Meirelles, não ficou satisfeito. O patrimônio declarado de Meirelles à Receita entre dezembro de 2001 e dezembro de 2002 apresentou uma variação relativamente pequena: caiu de R$ 109,3 milhões para R$ 96,7 milhões. Aparentemente, ele lança mão de economias, bens, rendimentos e direitos recebidos durante 2002 para comprar a totalidade de duas empresas com sede nos Estados Unidos: a Red Horizon e a Tranquil Bay. Para o TRE goiano, ele diz ter um patrimônio de
R$ 45 milhões. Ou seja, o então candidato pelo PSDB à Câmara dos Deputados faz uma seleção tal que mais da metade do patrimônio declarado ao Fisco entre os dois anos acaba excluída da conta quando ele responde às normas de transparência exigidas pela justiça eleitoral. A maioria dos candidatos nem faz seleção. Simplesmente entrega ao tribunal eleitoral uma cópia da parte relacionada ao patrimônio incluída na declaração de rendimentos.

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A nota oficial do BC informa que “após revisão e recomendação de consultores especializados, em abril e maio de 2004, o presidente Meirelles apresentou, espontaneamente, retificação de sua declaração de rendimentos e bens para aperfeiçoamento das informações declaradas como permite e incentiva a legislação tributária, sem adição ou subtração de nenhum bem”. Na retificação da declaração relativa ao ano de 2002, entregue quatro horas e 22 minutos após ISTOÉ encaminhar perguntas sobre seu patrimônio, ele se recorda que deixou de declarar R$ 629 mil dos rendimentos recebidos do Exterior e conclui que deduziu indevidamente R$ 43,5 mil em despesas médicas. Um dos tributaristas consultados por ISTOÉ recomenda que as deduções excluídas sejam checadas. Podem dizer respeito a despesas de Meirelles feitas entre janeiro e maio de 2002, período em que ele diz ter domicílio nos Estados Unidos. Esses pagamentos e sua afirmação à Folha de que mudou-se para cá em 2001 caracterizam que o domicílio fiscal do presidente do BC de fato já era o Brasil.

Uma outra questão chama a atenção de especialistas: em 27 de fevereiro de 2003, o presidente do BC encaminhou à Receita Federal uma declaração de isento relativa ao ano 2001, possivelmente para reativar seu CPF, que ele disse em nota ter sido cancelado pelo Fisco. Nesse tipo de declaração, o contribuinte responde “sim” ou “não” a cinco perguntas. O campo reservado para que ele informe se é residente no Exterior está preenchido com a letra “N” de não. É um ponto controverso. Tributaristas alertam que, em geral, ao responder uma declaração de isento, o contribuinte relata sua situação presente. Portanto, nessa hipótese, Meirelles estaria se referindo à sua condição em 27 de fevereiro do ano passado. Para outros, como a declaração se refere ao ano 2001, o próprio Meirelles estaria informando que naquele ano (2001) não morava no Exterior. Sobre o cancelamento do CPF, existe uma outra dúvida. O Ministério Público Federal verificou que Meirelles tem contas correntes em algumas agências do BankBoston no Brasil em 2001, 2002 e 2003. O que os procuradores querem saber é se, em algum momento, o presidente do BC manteve contas bancárias com o CPF cancelado. As normas tributárias são claras: para ter conta bancária, o contribuinte, morando fora ou não, tem que ter CPF ativo.

No campo político, a demissão de Candiota também não tira Meirelles do foco. A CPI do Banestado insistirá no depoimento do ex-diretor e já começou a fazer levantamentos em relação a movimentações de Meirelles e do BankBoston. Até agora, o presidente Lula apoiou o presidente do BC. “Meirelles detém a minha confiança”, declarou na quarta-feira 28, em Cabo Verde, na África. Mas do lado de cá do Atlântico, o caso reacendeu o fogo amigo: “No Banco Central, a sua palavra não pode ter dúvida”, atacou o presidente do PL, Valdemar Costa Neto (SP). Já o vice-presidente, José Alencar, tira o corpo fora quando é convidado a defender o presidente do BC. “A primeira pessoa que deve saber se isso respinga ou não é ele próprio”, diz. Com as tribunas reabertas na volta do recesso do Congresso, a oposição tentará usar o episódio para desgastar o governo. O líder dos tucanos no Senado, Arthur Virgílio (AM), vai cobrar esclarecimentos de seu ex-colega de partido. “Tenho uma relação de respeito com o presidente Meirelles, mas ele tem que dar explicações. Quem costuma agir assim, alterando declaração, são os candidatos a cargo eletivo, mas ele é o guardião da moeda brasileira”, diz Virgílio. “Lula deveria demitir Meirelles”, dispara o presidente da CPI Antero Paes de Barros. Se o governo não agir, a crise vai longe.


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