As Forças Armadas estão se enredando cada vez mais rápido na armadilha que o bolsonarismo representa para elas. Podem ferir-se seriamente com a divulgação do vídeo em que Jair Bolsonaro, diante de seus ministros, revela-se insatisfeito com a “segurança” no Rio de Janeiro. O ministro Celso de Melo, do Supremo Tribunal Federal (STF), deve decidir até amanhã se libera o vídeo, e se o faz com cortes ou na íntegra.

Como afirma o ex-ministro Sérgio Moro, e outros que tiveram acesso às imagens, o vídeo demonstra que o presidente, ao falar em segurança, se referia à superintendência da Polícia Federal no Rio e ao seu desejo de ter controle sobre ela. A versão governista é outra: Bolsonaro reclamava do aparato militar que protege sua família no Estado, e da dificuldade em fazer mudar sua estrutura. Esse aparato responde ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e não ao Ministério da Justiça, então ocupado por Moro.

Já há indícios de que a versão bolsonarista é esfarrapada. Em particular, o fato de que o presidente, em março, não teve dificuldade nenhuma em trocar os comandantes de sua segurança pessoal – não para puni-los, e sim para promovê-los. O vídeo pode rasgar de uma vez a fantasia, deixando pornograficamente expostas as intenções de Bolsonaro na PF e a mentira que se contou para encobri-las.

E por que isso diz respeito às Forças Armadas? Porque os três assessores mais próximos do presidente são generais: os ministros Augusto Heleno (GSI), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e Braga Netto (Casa Civil). E os três prestaram depoimento endossando a história que Bolsonaro não queria interferir na PF, não estava pensando e muito menos falando disso. A depender do que vier a público nas gravações, os três generais se tornarão cúmplices de uma mentira. Não é o que se espera de representantes estrelados das Forças Armadas.

Há vários anos o instituto Datafolha publica uma pesquisa sobre a confiança dos brasileiros nas instituições. As Forças Armadas têm surgido no topo do ranking de maneira consistente. Em 2019, 45% do entrevistados disseram confiar muito na instituição. Os militares dão valor a esse patrimônio. Sabem que a ditadura (1964-1985) deixou máculas em sua imagem, e que o afastamento da política e a profissionalização das últimas três décadas foram cruciais para que a confiança e o respeito se restaurassem na população.

A chegada do ex-capitão Bolsonaro à presidência trouxe um novo dilema às Forças: em qual grau participar do governo? O presidente chamou os militares a cumprir tarefas. E eles toparam – o que a princípio é bom. Militares costumam ter formação sólida, e não há por que impedi-los de atuar na administração pública, mesmo em funções que não estão diretamente relacionadas à segurança. Mas hoje há algo em torno de três mil fardados ocupando cargos comissionados no governo federal. É gente à beça, recebendo os bons salários do setor público.

Só isso já abre espaço para um certo desconforto. No lugar dos sindicalistas outrora abrigados no governo pelo PT, entram os militares. Os personagens mudaram, a cor agora é verde-oliva, e não mais vermelha, mas o corporativismo continua o mesmo, incrustado no Estado. Nos últimos meses, contudo, começaram a se multiplicar os exemplos de que os militares entraram para valer no jogo político, e não só no jogo técnico da administração.

Um caso desta semana é o novo protocolo do Ministério da Saúde para uso da cloroquina em pacientes com sintomas leves de covid-19. Como as evidências científicas são contra o uso do remédio nessas circunstâncias, foi necessário derrubar dois ministros da saúde ligados à medicina em menos de dois meses, e colocar um general à frente da pasta, para que a obsessão de Jair Bolsonaro com a liberação da cloroquina fosse satisfeita – num documento que por vários dias ficou sem a assinatura de um responsável técnico, e nesta quinta foi assinado por todos os secretários da pasta – possivelmente para mostrar “unidade”.

Outro caso desta semana: ao assumir tarefas de fiscalização do desmatamento na região da Amazônia, o Exército simplesmente ignorou informações que lhe foram repassadas pelo Ibama a respeito de onde estariam ocorrendo infrações e foi fazer batida em um lugar que havia sido inspecionado pouco tempo atrás. Não autuou ninguém nem tampouco inutilizou ferramentas que são usadas para desmatamento – outra obsessão bolsonarista.

Mas nada disso se equipara ao risco assumido pelos três generais do Palácio do Planalto ao se tornar fiadores da narrativa bolsonarista no caso da PF. Eles podem sair do episódio com uma das pechas que mais pesam sobre os políticos: a de mentirosos. Podem tornar difundida a impressão de que as Forças Armadas deixaram de ser a confiável institutição de Estado que os brasileiros prezam para tornar-se tão somente uma ferramenta de governo. E que governo…