Os termômetros marcavam 12 graus centígrados na noite da terça-feira 24 em São Paulo. O frio poderia ser um atrativo a mais para correr para debaixo das cobertas cedo, mas os paulistanos não pareciam dispostos a abrir mão do prazer de saborear um chope bem tirado na companhia dos amigos. No boêmio bairro da Vila Madalena, os bares estavam lotados, os garçons serviam tulipas em todas as mesas e a nova legislação, que estabelece até cadeia para quem dirige sob o efeito do álcool, em nada atrapalhava o clima festivo. "Nem me lembrava da lei. Só agora que você tocou no assunto", admitiu a executiva Patrícia Galvadão, 32 anos, que tomava uma caipirinha de saquê no Boteco São Bento e voltaria para casa, distante 20 minutos do bar, dirigindo. Na mesa de Patrícia, mais oito amigos. Cinco confirmaram que pegariam o carro na saída, embora estivessem bebendo. Se fossem flagrados pela polícia, teriam sérios problemas.

Desde o dia 20, quem tiver 0,2 grama de álcool por litro no sangue – que corresponde a 0,1 mg de álcool por litro de ar expelido, detectado em teste com bafômetro, terá cometido uma infração gravíssima, seu veículo retido, pagará multa de R$ 955 e será proibido de dirigir durante um ano. Esta quantidade equivale a um chope para uma mulher de 60 kg (leia quadro à pág. 78). Se o total de álcool no sangue ultrapassar 0,6 g/l, o motorista irá preso e responderá criminalmente. A pena de seis meses a três anos é afiançável. As medidas endurecem a legislação de 1997, que previa a tolerância de 0,6 grama de álcool por litro de sangue, quantidade semelhante ao limite estabelecido em países desenvolvidos. O infrator estava sujeito à mesma multa e suspensão da carteira por um ano, mas não era um criminoso.

A intenção do governo com esta política de tolerância zero é reduzir as tristes estatísticas de acidentes de carro no Brasil. Segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, 36 mil pessoas morrem no trânsito por ano no País, conforme dados de 2006. Em 61% dos casos, o motorista havia bebido. Quando houve vítimas fatais, o condutor estava alcoolizado em 75% das vezes. "A lei é propositalmente dura para tentar reverter este quadro. É dura, mas numa linha mundial", diz o secretário-executivo do Ministério da Justiça, Luiz Paulo Barreto. "Acredito que em um ano essas medidas podem reduzir em 40% os acidentes com mortes."

A pesquisa Beber e Dirigir, divulgada na semana passada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), analisou o comportamento de 6.356 motoristas durante dois anos em cinco cidades e mostra dados alarmantes. Dos que concordaram em se submeter ao bafômetro (75% dos entrevistados), 19% estavam com níveis de álcool no sangue superiores a 0,6 g/l. Números, em média, seis vezes mais elevados do que os auferidos em pesquisas semelhantes nos países desenvolvidos. E são os adolescentes e jovens adultos as principais vítimas de acidentes de trânsito. "A tolerância deles ao álcool é menor. Ou seja, doses ainda menores podem ter efeitos mais intensos", diz a psiquiatra Ana Cecília Marques, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas. Nos três primeiros dias de vigência da lei, centenas de motoristas foram presos e multados em nove Estados do País.

Ninguém tem dúvida sobre a necessidade de mudar esta realidade. Mas a nova lei seca está longe de ser uma unanimidade por seu rigor. Agora, o casal que sair para jantar e dividir uma garrafa de vinho poderá terminar a noite na cadeia se for parado em uma blitz com bafômetro. Chef do estrelado restaurante Le Pré Catalán, no Rio de Janeiro, o francês Roland Villard lamenta o radicalismo da legislação. Uma boa comida, segundo ele, precisa de um bom vinho. "Uma taça não compromete. Os acidentes são causados por quem bebe, mas por quem bebe muito", pondera. A política de tolerância zero implica uma mudança de hábitos sociais. O churrasco dominical regado a chope com a família será diferente, cidades turísticas onde o principal atrativo é a bebida, seja vinho, cerveja ou cachaça, terão de se adaptar aos novos tempos.
 

"Estão querendo colocar o Primeiro Mundo em um país de terceiro. Para uma lei dessas fazer sentido, deveria haver transporte público decente e não ter polícia corrupta", afirma o economista José Muylaert, 30 anos, que degustava um chope no início da madrugada da quartafeira 25 na calçada do Jobi, templo da boemia do Leblon, no Rio de Janeiro. É verdade. Sem transporte público de qualidade, com o preço elevado da bandeirada do táxi e o medo da violência, o brasileiro tem pouquíssimas maneiras de garantir o lazer de sair para beber com os amigos. É uma realidade diferente da dos europeus ou americanos, em que a tolerância ao álcool no sangue é, inclusive, mais elevada. "Estou a três quadras da minha casa e vou voltar de carro porque não dá para andar pelas ruas tarde da noite", justificava-se o engenheiro Silvio Brito, 30 anos, de São Paulo, que iniciava o terceiro chope da noite. "Antes de uma lei severa, o governo deveria investir em infra-estrutura."

Entre os consumidores afinados com a nova realidade, a alternativa tem sido eleger um amigo da turma para dirigir e não ingerir álcool. Moradora de São Bernardo do Campo, município da região metropolitana de São Paulo, a professora Fernanda Zullin, 25 anos, decidiu não beber na noite da terça-feira 24 para guiar em segurança até sua casa. "Darei carona para duas pessoas esta noite", contou, de olho no chope dos amigos. Em outro bar da cidade, a analista de comércio exterior Erica Samecima, 31 anos, também tomava apenas refrigerante e daria carona a duas amigas. Naquela noite, ela usava uma braçadeira na qual se lia "Piloto da vez". Este é um movimento lançado pelo fabricante de uísque Johnnie Walker que, com a nova lei, tem tudo para ganhar visibilidade. Os garçons ficam proibidos de oferecer à pessoa com o acessório qualquer bebida alcoólica.

Os bares e restaurantes precisam de idéias criativas para driblar a situação. O tradicional Bar Brahma, no centro de São Paulo, encontrou uma saída. Desde a segunda-feira 23, disponibiliza uma van para levar os freqüentadores para hotéis e pontos turísticos da cidade. "Eles não colocam vidas em risco e ficam mais tranqüilos para beber à vontade", diz Álvaro Aoás, dono do bar. A idéia é ampliar o serviço para cinco vans dentro de três meses. Os estabelecimentos cariocas também cogitam fornecer transporte. Dono da rede Gula-Gula, com 110 restaurantes, e diretor do Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes, Pedro de La Mare orientou seus gerentes a firmarem convênios com táxis para dar descontos a clientes.

Os taxistas, aliás, estão se preparando para fazer a festa. O carioca Mauro Arantes ganha R$ 150 por noite e dá como certo o aumento do faturamento. Para o pernambucano Severino Bezerra, que há 12 anos faz ponto na frente dos bares da orla marítima de Olinda, a medida trará mais segurança para quem dirige à noite. "Trabalho durante a madrugada e já presenciei vários acidentes provocados por motoristas embriagados. Eu mesmo já fui vítima de dois. Mas, se não houver fiscalização, isso vai continuar", afirma. Uma ronda entre os bares freqüentados pela juventude pernambucana, paulistana, carioca e brasiliense, na semana passada, mostrou que há dúvidas sobre a eficácia da lei – e a maioria continua bebendo, alguns até ao volante.

Fazer a lei vingar é o principal desafio das polícias militares, que patrulham as cidades, e das corporações responsáveis pela fiscalização das estradas. A Polícia Rodoviária Federal possui 500 bafômetros para 61 mil quilômetros de rodovias federais e, apenas nos primeiros cinco meses do ano, flagrou 4.199 pessoas dirigindo alcoolizadas. O governo está comprando mais 500 viaturas, todas com o equipamento. A Polícia Rodoviária Estadual de São Paulo tem 82 bafômetros para cobrir uma área de 24 mil quilômetros e a Polícia Militar Rodoviária detém outros 79. Na capital, o número de aparelhos está subindo de 11 para 51 e a PM passou a armar blitze de noite e de madrugada nos dias mais movimentados. Na quinta-feira 26, 108 motoristas foram abordados, 71 submetidos a teste de bafômetro, oito perderam a carteira por um ano e pagaram multa de R$ 955 e quatro foram presos. Eles foram liberados após pagar fiança e vão responder criminalmente pela infração.
 

O Rio de Janeiro está menos mobilizado. Inicialmente, o Detran anunciou a doação de 600 bafômetros descartáveis para a PM, mas desistiu porque as autoridades consideraram que o equipamento não era preciso o suficiente. O Detran, agora, fornecerá apenas um bafômetro. No total, há apenas dez aparelhos para patrulhar as estradas e todos os municípios do Estado. Na Secretaria de Segurança Pública, o assessor de comunicação, Dirceu Viana, informou que o governo ainda não orientou os policiais sobre como agir diante da nova lei e a PM "não vai ficar fazendo operação para pegar bêbado". Uma semana após a entrada em vigor da lei, apenas o pedreiro Ademir da Conceição Santos, 49 anos, havia sido detido sob a acusação de dirigir embriagado. Na noite da quartafeira 25, ele atropelou uma mulher no acostamento na rodovia na região de Angra dos Reis. A vítima, de 36 anos, sofreu ferimentos leves. Ademir foi autuado por dirigir sob efeito de álcool e por lesão corporal. Para cada um dos dois crimes foi arbitrada fiança de R$ 2 mil. Como não pagou, ele continua preso.

Outro carioca, engenheiro do Departamento Nacional de Infra-estrutura de Transportes (DNIT), foi um dos primeiros detidos com base na nova lei em Minas Gerais. A alegação de que tinha bebido só duas latinhas de cerveja não aliviou a situação de Arilson Silva, que passou duas horas detido pela Polícia Rodoviária Federal. Pior: foi exonerado do cargo de chefe do Distrito de Conservação de Obras de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro. Em Anápolis (GO), Carlos Henrique Silva Dias, 18 anos, foi detido por dirigir embriagado. Ele atingiu um veículo parado no acostamento por falta de combustível. Maria de Lourdes Silva, 26 anos, e os filhos, Ryan Moreira Araújo, quatro anos, e Laís Moreira Araújo, oito, morreram na hora. Carlos Henrique responderá por homicídio doloso (com intenção de matar) porque havia bebido.

Não há dúvida de que casos como esses devem ser punidos exemplarmente. Mas, em tempos de tolerância zero, ajudar um amigo em apuros pode virar um problemão. O empresário Jullian Neves, 21 anos, perdeu a carteira de habilitação na noite do sábado 21, na cidade de Itajaí (SC). Ele jantava em um restaurante quando recebeu o telefonema de um amigo detido em um posto da polícia rodoviária. O amigo de Jullian voltava de uma feijoada, onde havia tomado cinco latas de cerveja, e o teste do bafômetro acusou 0,89 mg de álcool por litro de ar expelido. Teve o carro e a carteira apreendidos pela infração grave e, por isso, pediu a Jullian para buscá-lo.

O empresário também teve de se submeter ao bafômetro, que indicou 0,12 mg por litro de ar expelido, quantidade acima da permitida, mas absolutamente tolerável em países como França, Suíça ou EUA. Por isso, Jullian teve a habilitação apreendida na hora. "Tinha tomado apenas uma cerveja havia mais de quatro horas", garante ele. O curioso é que nem Jullian nem seu amigo pagaram a multa de R$ 955. Um perigoso precedente para a política de tolerância zero cair no vazio

Reportagem: Adriana Prado, Aziz Filho, Claudia Jordão, Danilo Tenório, Hugo Marques, Mônica Tarantino, Sergio Pardellas e Suzane Frutuoso