Enquadrada da vizinha linha de trem que serpenteia num nível acima dos telhados, a favela de Kibera, em Nairóbi, no Quênia, parece um mar de folhas de zinco. Mais de perto, é um amontoado de casebres feitos de barro vermelho, o mesmo que cobre o chão por onde escoam esgotos a céu aberto. Ali vivem cerca de 800 mil pessoas, um quinto contaminado pelo vírus da Aids. O local foi escolhido pelo cineasta Fernando Meirelles como set para algumas das seqüências mais impactantes de O jardineiro fiel (The constant gardener, Inglaterra, 2005), que tem pré-estréia na quarta-feira 5, no Festival do Rio, e chega aos cinemas no dia 14. É lá que a ativista Tessa Quayle (Rachel Weisz), mulher do diplomata inglês Justin Quayle (Ralph Fiennes), trabalha como voluntária, sempre acompanhada do motorista queniano Arnold Bluhm (Hubert Koundé). Do outro lado da linha, um verdejante campo de golfe serve de cenário para o alto escalão de Sua Majestade trocar ironias, enfiado em trajes esporte fino.

Meirelles poderia ter recriado esses contrastes na África do Sul, onde a indústria cinematográfica é mais bem estruturada. Mas preferiu a primeira opção em favor da autenticidade. Essa verdade documentária, uma resposta àqueles que acusaram o ponto de vista de Cidade de Deus de “cosmética da fome”, é um dos pontos fortes da fita. Nos Estados Unidos, onde está em cartaz há um mês – e continua firme no oitavo posto do Top 10 –, a produção de US$ 25 milhões já faturou a mesma quantia. O crítico Roger Ebert, do jornal Chicago Sun-Times, cravou quatro estrelas em sua resenha, finalizada com a frase definitiva: “Esse é um dos grandes filmes do ano.” Os mais apressados já falam em Oscar. O melhor de tudo é que O jardineiro fiel, baseado no bestseller de John Le Carré, é mesmo muito bom. E atualíssimo, ao tratar das baixarias da indústria farmacêutica, que estaria usando africanos como cobaias para novos medicamentos.

O thriller político, que tem como pano de fundo uma triste história de amor e perda – ou vice-versa –, conquista já na abertura, ao encenar um acidente de carro nas margens do lago Turkana. A câmera de Cesar Charlone mostra apenas as rodas do jipe capotado e um bando de aves aquáticas que quebram o silêncio com um vôo coreografado. É a cena de um assassinato, logo se deduz, uma morte surda em um continente sem Deus. Um salto para o passado e vemos em Londres a vítima, a ativista Tessa Quayle, como ouvinte de uma conferência do futuro marido, Justin. Com perguntas constrangedoras sobre o apoio britânico à intervenção americana no Iraque, Tessa faz a audiência bater em debandada e termina sozinha com o palestrante. Ela chora. Ele, meio tímido, a consola. Ele é o jardineiro do título, um sujeito formal, de gabinete. Ela, um vulcão, uma pragmática. É o início de uma atração de opostos, uma paixão que, se pressente, não vai acabar bem.

Tessa é uma mulher de ação. Já na África, ela transita grávida pelas vielas pútridas para levar auxílio aos desamparados. Perde o filho. Mas não é uma Madre Teresa de Calcutá. Ao observar uma aplicação coletiva de exames anti-HIV, percebe que os pacientes estão também recebendo um remédio contra a tuberculose, chamado Dypraxa. Tessa suspeita que o medicamento, criado por um cientista desencantado que se encerrou nos confins do Sudão, Lorbeer (Pete Postlethwaite), está causando a morte de muita gente. Mais tarde, numa festa de alta roda, ela causa a maior saia-justa ao perguntar a alguém do governo sobre o destino das verbas para a saúde. E Justin mais preocupado com suas flores. Quer dizer: também com um e-mail endereçado à esposa. Nele se lê: “O que você estava fazendo com Arnold na noite de sexta-feira no hotel Hilton? Justin sabe disso?” O problema é que o diplomata não sabe nada da mulher. E só começa a descobrir – e gostar ainda mais dela – quando toma a dianteira e passa a investigar a sua morte, supostamente pelo motorista (na verdade, médico) Arnold. Misturando os tempos e sem perder a mão do suspense político e da delicadeza do drama íntimo, Meirelles assinou um grande filme. É o seu passaporte para o cinema mundial e que o fará uma persona non grata dos grandes laboratórios.