Pior do que viver numa anarquia é viver numa anarquia dada a rompantes autoritários. A bagunça, em si, pelo menos dá a impressão simpática de que cada um pode fazer o que quiser, até o belo dia em que todo mundo resolve trafegar pelo acostamento de uma estrada engarrafada e, de repente, ninguém mais pode fazer o que queria. Esses são os nós que a vida cotidiana ata e desata, enquanto o governo finge que nada tem a ver com eles. Ou seja, são coisa nossa.

Mas desmando que manda é bicho estranho, quase extraterrestre. Entra em erupção sem aviso. Ou com avisos que a experiência ensinou a população a ignorar. E aí, irmão, é preciso ter cuidado, porque deve andar por perto um policial cercado de repórteres, porque o velho vulcão político, que se supunha extinto, acaba de cuspir mais um jato de lava incandescente, aquecida na caldeira de suas crises internas. E lá vem a Lei 11.705. Ela caiu com rigor escandinavo, vinda não se sabe de onde, sobre suspeitos de tomar um copo de chope, mastigar bombom de licor ou mesmo bochechar com dentifrício à base de álcool, antes de pegar o volante.

Nessas horas, o motorista que vinha cumprindo tranqüilamente sua rotina de estacionar na calçada, ultrapassar pela direita e furar os sinais vermelhos corre o risco de dobrar uma esquina em Harare e entrar, sem querer, numa rua de Oslo. A 11.705 é uma ilha de austeridade norueguesa em nosso trânsito zimbabuense.

Poucos lugares do mundo tiveram a coragem de ir tão longe, como o Brasil, no encalço de quem dirige bêbado. Dos 82 países que fizeram leis sobre o assunto, sem excluir veteranas democracias européias, 63 foram mais brandos. O Brasil partiu direto para a cabeça, tanto no teor de álcool permitido quanto no teor das penas previstas. Não é pouca coisa, para uma lei que tramitou por um Congresso convertido em modelo cívico de autocomplacência. Leva a assinatura de um presidente que deve parte de seus dois mandatos à impunidade de sua equipe.

Lula anunciou a nova Lei Seca como uma medida que só "contraria alguns interesses" e representa o primeiro passo para "reduzir o consumo de álcool em todo o País". Eis dois propósitos que, ditos assim, não têm contra-indicação. Mas a declaração soou como se ele atendesse, com quatro anos de atraso, à sugestão do correspondente Larry Rother, insinuando no The New York Times que o presidente dirigia o país sem passar no teste do bafômetro: "Dê o exemplo e será lembrado por uma coisa boa."

Aqui, servidas ainda quentes, as leis costumam pegar. Depois é que são elas

Está na praça o exemplo. Só falta saber se vai durar. Aqui, servidas ainda quentes, as leis costumam pegar, com fotógrafos e cinegrafistas empurrando os guardas de trânsito, todos com urgência de ver os debutantes dançando no bafômetro. Depois é que são elas.

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O desarmamento, por exemplo, também veio forte. Pegou até proprietários de trabucos enferrujados e colecionadores de armas antigas, que ilustravam jornais com o belo gesto de entregar à polícia peças que não serviam nem para assaltar a própria geladeira. Depois, assim como surgiu, o desarmamento passou. Há anos não se fala mais dele.

Se esses surtos passassem sem deixar rastros, seriam programas de temporada que animam o noticiário. Mas eles deixam para trás um país mais dividido, agora entre pessoas que foram apanhadas às carreiras para servir de cobaia à última palavra em disciplina social e felizardos que escaparam para sempre do surto moralizador, depois que o entusiasmo inicial arrefeceu. Medidas assim, fortes na largada, mas curtas de fôlego, são loterias jurídicas. Em vez de tornar todos iguais perante a lei, estabelecem novos padrões de desigualdade. Elas acabam e o efeito permanece, quando a anarquia pura e simples volta a reinar sobre o caos nosso de cada dia.


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