Até o dia 29 de dezembro, o primeiro sargento reformado Altair Eller, 66 anos, levava uma vida tranquila de aposentado na orla de Fortaleza. Casado com uma segunda mulher, Lucileide, 31 anos, com quem teve o filho Tiago, de dois, Eller estava pronto para viajar com a família ao Rio de Janeiro. Passariam o réveillon com a ex-mulher Nanci e os filhos do primeiro casamento Carla, Cristina, César e a mais famosa da família, a cantora Cássia Eller. Os detalhes para a comemoração do Ano-Novo foram combinados pelo telefone na última conversa entre Altair e Cássia na noite de Natal. O pai contou que a filha estava num momento muito feliz da carreira e transmitia otimismo com a turnê de shows programada para o Oriente Médio, Estados Unidos, Europa e Japão. A convite de Cássia, o pai se preparava para acompanhá-la na excursão internacional. Mas na noite do sábado 29 veio a trágica notícia com um telefonema de um dos filhos relatando a morte da cantora. Na entrevista exclusiva que concedeu a ISTOÉ, na quinta-feira 3, Altair Eller se mostrou inconformado. “Não descarto a possibilidade de homicídio. Não quero acusar ninguém, mas pode ter sido uma morte provocada por uma triangulação amorosa”, afirmou ele, referindo-se ao envolvimento simultâneo de Cássia com Maria Eugênia Vieira Martins – sua companheira há 14 anos – e a percussionista de sua banda, Elaine Moreira, a Lan Lan. O pai da artista descarta que a filha tenha morrido por ingestão de drogas e antecipa um futuro conturbado na família. Disse que vai lutar na Justiça pela guarda do neto, Francisco Ribeiro Eller, de apenas oito anos, e pela tutela dos seus bens.

Os momentos que antecederam a morte de Cássia Eller continuam envoltos em mistério e numa sucessão de informações incompletas. Talvez a única pessoa capaz de esclarecer a história seja Lan Lan, que esteve com Cássia em seu apartamento antes que ela desse entrada na Clínica Santa Maria, em Laranjeiras, bairro da zona sul carioca, onde veio a morrer. A percussionista ainda não foi à polícia prestar depoimento. Preferiu se refugiar do assédio em Salvador, de onde mandou dizer, pelo advogado Artur Lavigne, que só falará na quinta-feira 10. Lan Lan antecipou que recebeu um pedido de socorro de Cássia na manhã de sábado. “Ela disse que não estava se sentindo bem e ligou para que eu fosse buscá-la”, contou por telefone a Lavigne. Em seguida, foi ao prédio da cantora, no Cosme Velho, acompanhada da também percussionista Thamyma Brasil. Elas teriam levado Cássia para uma volta de automóvel. O porteiro Ademir Nascimento lembra apenas de ter visto Lan Lan e Cássia no carro, saindo por volta das 9h. Quando voltaram, pouco depois, a cantora deixou com ele as chaves do apartamento para serem entregues à sua mãe, que chegaria de viagem. “Feliz Ano-Novo”, desejou ela ao porteiro, antes de sair novamente de carro,
às 10h15.

Por volta do meio-dia, algumas pessoas a viram chorando na rua das Laranjeiras, bairro vizinho ao Cosme Velho, amparada por duas amigas. Cássia estava com um pé descalço e trazia o jeans arregaçado até a perna, deixando à mostra um machucado no tornozelo. Só deu entrada na Santa Maria às 13h. Segundo testemunhas, tentou escapar e foi levada de volta por um dos médicos. Depois de sofrer três paradas cardiorrespiratórias, morreu às 19h05. O cardiologista Rafael Luna, chamado pelo empresário da cantora, Ronaldo Vilas, chegou à clínica depois de a artista sofrer a primeira parada cardiorrespiratória. “Ela estava com dois terços do coração comprometidos. Prevíamos que não resistiria muito”, conta o médico. Luna diz que a morte de Cássia pode ser atribuída a uma intoxicação exógena, ou seja, provocada por agentes externos ao corpo. Talvez seja droga. Mas até agora nada ficou provado.

O laudo expedido pela clínica foi considerado pouco esclarecedor pelo delegado adjunto da 10ª Delegacia Policial, Gláucio de Souza Santos, que determinou a realização de necropsia no corpo da cantora. A necropsia constatou grande hematoma na parte interna da cabeça, na altura da testa, e ferimento em uma das pernas. O laudo da perícia deve levar duas semanas para ficar pronto.

“Os bens têm de ficar com o menino”

 

ISTOÉ – O sr. está convencido da tese da morte de sua filha por overdose?
Altair Eller – De forma alguma! Em nossas últimas conversas pessoais e por telefone, minha filha se mostrava muito feliz e estava radiante com o sucesso na carreira. Ela me confessou que nunca imaginara chegar tão longe. Nós tínhamos um contato permanente e próximo. Só não passamos o Natal juntos, em Brasília, porque meu filho caçula pegou uma virose muito forte. Quando ela esteve aqui em Fortaleza, em novembro, se queixou de muito cansaço e disse que precisava reunir forças para enfrentar um início de ano tumultuado, com vários shows no Brasil e no Exterior. Ela estava feliz. Não tinha nenhum motivo para provocar a própria morte, pois dava muito valor à vida. A circunstância da morte está muito obscura, complexa e absurda. Estou chocado e acompanhando, através de amigos militares, todos os depoimentos.

ISTOÉ – É verdade que ela teria tido uma convulsão em Brasília, no dia de Natal?
Eller – Falei com minha filha por telefone. E garanto que não houve nada disso. A imprensa está falando muita coisa que não bate com o estado de espírito de minha filha.

ISTOÉ – O sr. suspeita de outra causa da morte?
Eller – Não descarto a possibilidade de homicídio. Não quero acusar ninguém, mas pode ter sido uma morte provocada por uma triangulação amorosa. Todo mundo sabia que a Cássia tinha uma relação muito forte com a Lan Lan. Minha filha me disse isso. Mas eu não tenho nada contra a Lan Lan. Pelo contrário, eu a achava uma excelente profissional e muito querida, mas, como eu disse, está tudo muito nebuloso. Não dá para tirar conclusões ainda.

ISTOÉ – E como a Eugênia reagia ao caso de Cássia com a Lan Lan?
Eller – Eu conversei sobre isso com a Cássia. A Maria Eugênia sabia da relação. Embora não gostasse muito, acabava aceitando. Elas tinham um relacionamento aberto. A Maria Eugênia costumava me dizer que a Cássia corrigia todas as suas falhas com ela quando soltava a voz no palco. As três mantinham um contato bastante cordial. Chegaram, inclusive, a sair juntas várias vezes.

ISTOÉ – Com quem deve ficar a guarda do seu neto?
Eller – É um assunto delicado, pois não queremos magoar a Maria Eugênia, que realmente criou o Chicão, já que minha filha passava a maior parte do tempo viajando. Tem um lado humano, mas juridicamente não há nenhum papel para garantir que a Maria Eugênia tenha a guarda do meu neto. O relacionamento entre elas era informal. O menino precisa de uma figura masculina. Ele está traumatizado e não quer falar sobre a morte da mãe. O trauma com a morte do pai já foi muito grande. Quando passei dois meses no Rio de Janeiro, no ano passado, ele me pediu para morar com ele e ser o pai dele. Disse que gostaria de ter um pai como eu. Ele sempre aceitou a relação das duas. Chamava a Cássia de mãe e a Eugênia de mãezinha. Ou seja, a figura do pai ficava sempre ausente. Acredito que, embora dolorosa, a batalha na Justiça pela guarda do Chicão será inevitável.

ISTOÉ – O sr. já conversou com a Maria Eugênia sobre isso?
Eller – Eu tentei um primeiro contato com a Eugênia, que está na casa da irmã, em Brasília. Mas ela está muito chocada e, através de um amigo comum, prometeu conversar comigo depois do dia 12 de janeiro. Vamos tentar fazer da maneira menos dolorosa para meu neto. Informalmente, tenho conversado também com meus filhos sobre o destino do Chicão.

ISTOÉ – Neste caso, o sr. seria o tutor?
Eller – Acho que tenho mais condições para isso. Tenho um salário estável como aposentado, em torno de R$ 3 mil, um apartamento, uma família e um bom relacionamento com meu neto. Tenho melhores condições que a avó (Nanci Eller, mãe de Cássia, que mora em Belo Horizonte). Eu me sinto preparado para criar o meu neto.

ISTOÉ – E os bens?
Eller – Acho que todos os bens têm de ficar com o menino. A minha filha deixou um bom seguro para ele, uma boa poupança e um apartamento de luxo no Rio. Tudo deve ficar para ele.

ISTOÉ – Como o sr. soube da opção sexual de sua filha?
Eller – Há 12 anos ela própria me contou: “Pai, esse negócio de me esfregar com homem não é comigo mesmo.” Depois de algum tempo ela me disse que desejava ser mãe, pois queria provar que, mesmo homossexual, também era mulher. Falou que faria uma produção independente, que ninguém tinha nada a ver com isso. Apesar das observações dos meus amigos militares, que são mais conservadores, eu sempre aceitei bem a opção da minha filha. Hoje, o mundo está mudado e temos de acompanhar a modernidade.

ISTOÉ – E como foi a infância da Cássia?
Eller – Foi uma infância tranquila, apesar das constantes mudanças da família devido à minha carreira militar. Minha filha sempre foi muito carinhosa. Sempre teve uma ligação muito próxima com a família.

ISTOÉ – Qual a sua posição em relação ao projeto, proposto pela ex-deputada Marta Suplicy (prefeita de São Paulo), que defende o casamento entre homossexuais?
Eller – Não sou contra, mas também não chego ao ponto de fazer a apologia do casamento homossexual. Prefiro me manter neutro.

Casamento para valer, sem lei

A morte de Cássia Eller jogou no olho do furacão as duas pessoas que a cantora mais amava: a companheira Eugênia e o filho Chicão. Por enquanto, a questão mais dramática é a guarda de Chicão. Eugênia sempre agiu como mãe e era tratada como tal pelo menino, muito ligado a ela. Cássia e Eugênia construíram uma relação de 14 anos, que no começo enfrentou uma natural fase de resistência dos familiares. “Hoje, meu pai diz que meu casamento é o melhor da família”, brincou a cantora em entrevista à revista ISTOÉ Gente, publicada em 17 de dezembro. Esta aceitação, no entanto, será posta à prova no momento da divisão da herança. Como se sabe, ainda não foi aprovada no Brasil uma lei que legalize o casamento homossexual e sua consequente comunhão de bens. Mas há um histórico favorável ao assunto. Em dezembro de 1988, uma decisão da Justiça carioca criou jurisprudência: o fotógrafo Marco Aurélio Cardoso Rodrigues, que mantinha uma união com o artista plástico Jorge Guinle Filho, foi reconhecido oficialmente como herdeiro depois da morte do parceiro. “Consegui provar que dei apoio para meu companheiro aumentar seu patrimônio”, recorda Marco Aurélio, que ficou com metade do patrimônio após uma disputa judicial com a mãe de Guinle, Dolores Bosshard. Eugênia, então, tem base jurídica para reivindicar sua parte.

Quanto à guarda de Chicão, a discussão é outra. O advogado Celso Fontenelle, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do Rio de Janeiro, afirma que com a morte da mãe o pátrio poder passa automaticamente para a família de sangue. “A Justiça brasileira costuma nesses casos dar a guarda aos avós”, diz ele. Outro advogado, o carioca Paulo Lins e Silva, acredita que o juiz levará em consideração principalmente a vontade da criança. “Desde o seu nascimento, ele convive com Eugênia e não seria justo impor a ele mais um trauma, tirando-o de casa.” O juiz substituto da 1ª Vara da Infância e da Juventude do Rio, Leonardo de Castro, fala que em sua alçada o que se pode fazer é pedir a tutela. “Um dos fatores mais importantes numa questão como essa é a vontade da criança.” O empresário Ronaldo Vilas espera que Eugênia e a família da cantora se entendam, mas não estimula manifestações favoráveis à companheira de Cássia.

Pelo que a própria artista contava, a relação entre as duas era bem assimilada pelo garoto. “Vivemos nossa vida desde que o Chicão nasceu. Ele sabe tudo da gente e convive bem com isso, não mentimos”, contou Cássia na entrevista a ISTOÉ Gente. Sempre que a cantora viajava pelo Brasil para se apresentar em shows, o menino ficava sob os cuidados de Eugênia e nunca com parentes. Ela também costumava levá-lo à escola e participava das reuniões de pais. Todas as segundas e quartas-feiras era Eugênia quem ia buscá-lo na escolinha de futebol. Por todo este envolvimento, Cássia Eller já havia manifestado sua preocupação em relação à situação financeira da companheira e do filho. “Gostaria de ter um contrato de casamento legalizado. Queria poder garantir os direitos dela e do Chicão. No caso de separação ou de morte, a Eugênia não tem nenhum documento que prove que estamos casadas há 14 anos”, segredou ela à revista Marie Claire. E, como numa premonição, sentenciou: “Se me acontecer alguma coisa, meus bens têm que ir para ela e meu filho. A guarda do meu filho tem que ser dela, ela é a mãe.” Na verdade, a artista não ficou restrita à preocupação. Chegou a se reunir com um advogado para regularizar a situação da companheira.