Montagem sobre foto: Leo La Valle/EFE

Ela é filha dos anos 60, do rock’n’roll, da pílula,
da emancipação das mulheres, da luta armada e da repressão

A sombra de Evita Perón que ainda domina o imaginário da Argentina torna a pergunta inevitável: seria a senadora Cristina Fernández de Kirchner, mulher do presidente Néstor Kirchner, a herdeira da “dama dos descamisados”? A questão toca corações e mentes dos argentinos no momento em que crescem as especulações de que a atual primeira-dama poderá ser a candidata peronista à sucessão do marido na Casa Rosada já em 2007. E ganha relevância também porque a consagração política de Cristina coincide com a descida aos infernos da última mulher e sucessora do general Juan Domingo Perón, Isabel Martínez de Perón, presa na Espanha sob a acusação de responsabilidade em assassinatos, torturas e seqüestros no final de seu governo (1973-1976).

Na verdade, há pouco em comum entre as trajetórias políticas de Eva Duarte e Cristina Fernández. A primeira, bastarda e de origem humilde, era uma atriz do bas fond em 1944 quando seu destino se cruzou com o do coronel Juan Domingo Perón, então ministro do Trabalho e vice-presidente da República. Evita se tornou a companheira do Líder e só ganhou destaque quando o coronel foi afastado do governo e preso. Ela assumiu a campanha pela sua libertação, revelando-se uma líder de massas nata. Não demorou muito tempo para que ela ofuscasse a liderança do marido no movimento peronista. Com Perón na Presidência, a partir de 1946, Eva abraçou causas como o voto feminino e o assistencialismo aos pobres. A classe operária a idolatrava. Mas nem Evita nem Perón podiam admitir tal protagonismo da primeira-dama. “Evita foi criação minha”, afirmou Perón ao escritor Tomás Eloy Martínez. “Coronel, obrigado por existir”, disse Eva certa vez ao seu “mentor”. Mas no final ela incomodava muito mais do que Perón, tanto que foi impedida de se candidatar a vice-presidente em 1951 por pressões da cúpula partidária peronista, do Exército e da Igreja Católica – afinal, o casal Perón era “amancebado”, como se dizia então. A meteórica trajetória de Evita foi interrompida em 1952, quando um câncer a matou aos 33 anos. Os funerais pomposos, o culto ao cadáver embalsamado na sede da Confederação Geral do Trabalho e o seqüestro deste pelos militares que derrubaram Perón em 1955 adicionaram ao mito tonalidades macabras. O corpo de Evita só encontraria paz em 1974, quando foi finalmente enterrado no cemitério de La Recoleta.

Diferentemente de Evita, Cristina sempre teve luz própria e sua trajetória não foi traçada pela ascensão política do marido. Durante seus estudos universitários em La Plata, nos anos 70, ela militou na Juventude Peronista, facção de extrema-esquerda do movimento peronista, próximo do grupo guerrilheiro Montoneros. Foi nessa militância que conheceu Néstor, com quem viria a se casar. A sangrenta repressão que se abateu sobre os argentinos depois do golpe militar de 1976 obrigou os Kirchner a se mudar para Rio Gallegos, capital da distante Província de Santa Cruz, na Patagônia, terra natal de Kirchner. Com a volta da democracia, em 1983, o casal de advogados iniciou sua carreira política. Cristina se elegeu vereadora e Kirchner, prefeito de Rio Gallegos e depois governador de Santa Cruz. Em 1995, quando ela se tornou senadora por Santa Cruz, ele ainda era um obscuro governador provincial. Denunciando a venda ilegal de armas e a corrupção institucionalizada no governo de Carlos Menem, Cristina se tornou uma figura de projeção nacional. Seu trabalho foi fundamental para que Kirchner se elegesse presidente da República em 2003. Em 2005, ela teve uma votação estrondosa e se elegeu senadora pela Província de Buenos Aires.

Prestes a completar 54 anos, Cristina é uma mulher inteligente, vaidosa e moderna. Ela tem pouco em comum com a estirpe de mulheres fortes do passado argentino, permeado pela idéia da maternidade: veja-se Evita, a “mãe dos descamisados”, e as mães da Plaza de Mayo, que punham sua maternidade acima da própria vida. Cristina não. Ela é filha dos anos 60, do rock’n roll, da pílula, da emancipação das mulheres, da luta armada e da repressão militar. Está em pé de igualdade com o marido presidente e pode substituí-lo nas eleições deste ano ou em 2011. É a encarnação pós-moderna de Evita.