Numa noite de inverno em 1973, com os vagalhões comuns no Atlântico Norte, parecia impossível que qualquer barco fosse se aventurar pela costa da Irlanda. No entanto, cinco naves estavam em meio a um jogo de gato e rato. Do lado felino, quatro navios de guerra britânicos. A presa era o cargueiro Claudia, de bandeira liberiana, mas com uma tripulação de aguerridos irlandeses. A caça acabou de modo previsível: com a interceptação e a captura do perseguido. O que não se antevia, até que os porões do Claudia fossem abertos, era a estupenda quantidade de sua carga. Nela estavam mais de 500 rifles de assalto, dezenas de lançadores de granadas, armas leves e 200 quilos do explosivo plástico Semtex D. O serviço de inteligência britânico sabia que encontraria um arsenal de monta, mas não imaginava que fosse tão assustador. Conhecia-se o fornecedor do material e os receptores. O primeiro era o coronel Muammar Gadafi, ditador da Líbia, e seus clientes eram os militantes do Exército Republicano Irlandês (IRA em inglês), que luta pela independência da Irlanda do Norte do Reino Unido. Este teria sido o primeiro contato entre as duas partes, que viriam a se associar múltiplas vezes durante os anos 70 e 80, sempre com o mesmo tipo de transação. Na segunda-feira 26, porém, os frutos da parceria mortífera iriam literalmente para a sucata. O IRA anunciou que havia destruído todo o seu arsenal, numa esperada prova de que o grupo terrorista mais mortífero da guerra fria renunciara à violência.

Dois meses atrás, o IRA havia declarado que estava encerrando sua campanha militar para a independência da Irlanda do Norte (Ulster) e prometeu a destruição do arsenal, obedecendo a uma das bases de um acordo de paz assinado em 1998. Num comunicado curto, o comando do grupo afirmou ter cumprido sua parte na promessa. Desde seu ressurgimento, em 1969, este grupo armado matou 1.700 pessoas, numa guerra civil que fez cerca de 3.500 vítimas. A diferença neste número de mortos fica por conta dos que foram atacados pelo bando protestante unionista, arqui-inimigo dos católicos republicanos irlandeses. O líder destes últimos, o pastor Ian Paisley, 79 anos, vociferou contra a percepção generalizada de que a inutilização do arsenal fora feita para valer. “Não foram destruídas todas as armas, mas apenas as velharias. Ninguém sabe ao certo qual é o tamanho do arsenal do IRA”, disse. Mas, a esta altura, o velho unionista está falando sozinho.

Unionistas isolados – “A beleza da destruição do arsenal é que, com esse golpe, o IRA deixou Paisley isolado. Sem as armas dos republicanos, não há como os unionistas se manterem em pé de guerra”, disse a ISTOÉ Dermot Burke, ex-membro do IRA, dono do pub Beal Bocht, no Bronx nova-iorquino. Burke mantém contatos estreitos com o Sinn Fein, braço político do IRA. Sua familiaridade com o movimento independentista republicano é tamanha que o jogou na carreira de consultor de Hollywood para histórias sobre o grupo. Tanto que auxiliou as filmagens de filmes como The devil’s own (Inimigo íntimo, 1997), do diretor Alan Pakula, com Brad Pitt e Harrison Ford. “Não acredito que o IRA tenha destruído todo o seu arsenal. Concordo com Paisley: ninguém sabe o tamanho dos estoques de armas. Mas não acho que houve má intenção: simplesmente muitos militantes morreram sem deixar mapas de onde haviam enterrado suas armas. Há também que se considerar os múltiplos grupelhos radicais que não renunciaram às armas e ainda ameaçam novas ações. Muitos deles, aliás, não passam de bandidos comuns, sob o manto do IRA. E, como se sabe, todos os países têm gangues de malfeitores. Isso não quer dizer que a paz não possa ser alcançada”, diz o irlandês.

O adeus às armas também é um produto dos tempos. “Depois do 11 de setembro, a maior fonte de contribuição para o IRA secou totalmente. Os americanos – especialmente os de ascendência irlandesa – eram aqueles que mantinham recheados os cofres da organização. Muitos contribuintes eram policiais e bombeiros. Depois dos ataques de 2001, o IRA passou a ser visto como apenas um grupo terrorista e igualado aos radicais árabes que mataram tantos americanos, principalmente policiais e bombeiros”, diz Burke. O apoio popular ao grupo também foi secando na própria Irlanda, com a população cansada de guerra e, o que é pior, sofrendo com a violência de bandidos posando de libertadores. O IRA, assim como a ETA na Espanha, acabou virando uma máfia, vendendo proteção, extorquindo empresas e roubando bancos.

“Outro fator que pesou neste desarmamento foi a União Européia. Os líderes do movimento republicano na Irlanda viram como a UE provocou um grande desenvolvimento na República da Irlanda. De repente, nossos irmãos do sul estavam ricos. Concluiu-se que o que se tinha a fazer não era a independência da Grã-Bretanha, mas sim a entrada para a União Européia. Não é mais concebível que um território, como a Irlanda, ou o País Basco, ou a Catalunha, por exemplo, viva isoladamente, de forma totalmente independente. O mundo de hoje exige a união. E esta constatação foi a pá de cal que fechou a via subterrânea republicana irlandesa”, arremata Burke.