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Na tarde de 17 de maio de 2006, na cidade paulista de Campinas, a socióloga Marina Soler Jorge recebeu uma ligação de seu marido, o alpinista Vitor Negrete. Ele estava no acampamento de base do Everest e preparava-se para escalá-lo até o topo, o mais alto do mundo (8.848 metros) – o seu desafio seria completar a missão sem a ajuda de guia sherpa (grupo étnico da região) e sem levar oxigênio suplementar. Marina e Vitor conversaram através de um telefone por satélite e seu marido a avisou que ficaria incomunicável até retornar à base, o que levaria cerca de 12 horas. Essa foi a última vez que eles se falaram – eram casados havia quatro anos e pais de Leon e Davi. Horas mais tarde, Marina receberia a trágica notícia de que ele alcançara o cume, ou seja, tornara-se o primeiro alpinista brasileiro a completar a expedição sem o auxílio de oxigênio suplementar, mas não resistira aos efeitos da altitude e morrera na descida. Tragédia que Marina pressentiu quando soube que durante a descida precisou da ajuda de dois sherpas para chegar até sua barraca: “Vitor é o homem mais forte do mundo. Por que ele precisaria de dois sherpas?”, desesperou-se ela, que relembra hoje as aventuras do marido e traça o seu perfil no livro Espírito livre – da Transamazônica ao Everest: como Vitor Negrete chegou ao topo do mundo (Editora Rocky Mountain, 182 págs., R$ 34,90). A obra estará nas livrarias a partir do sábado 26.

i50307.jpgPara se entender a dificuldade da última empreitada de Negrete, até hoje duas mil pessoas alcançaram o pico do Everest, mas apenas 120 o fizeram sem o uso de um tubo de oxigênio – o ar rarefeito das grandes altitudes chega a reduzir a capacidade respiratória em até 80% e é a principal causa do chamado “mal da montanha”, que pode provocar a morte por edema cerebral ou pulmonar. Negrete sabia bem o risco que corria e cogitou de levar um cilindro de oxigênio para o caso de emergência. Desistiu e apostou numa escalada que fosse a mais “pura” possível. Por pureza, entenda- se simplicidade e desprendimento do que é material – traço da personalidade de Negrete, como descreve Marina, lembrando os projetos sociais do marido. Entre eles, estava o trabalho com os quilombolas do Vale do Ribeira que foi lembrado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na ocasião da morte do alpinista. Negrete morreu antes de realizar muitos dos projetos que tinha em mente. Um deles, incentivado por Marina, era escrever um livro contando suas aventuras, e para isso gravou relatos sobre as expedições – ele gravava, ela os transcrevia.

i50308.jpgUm mês após a morte de Negrete, Marina retomou o plano do livro com uma nova e dolorosa missão: reabrir os arquivos já transcritos e contar, ela mesma, as histórias. Como baseiam- se nas próprias palavras do alpinista, as descrições de Espírito livre são bastante realistas, com detalhes técnicos que só quem realmente vivenciou aquelas experiências pode fornecer. Soma-se a esse rigor técnico a emoção de uma observadora perspicaz que não compartilhava com o marido o amor pelos esportes radicais. “Nossas afinidades eram bem mais importantes que as nossas diferenças”, diz ela, que achava um “tédio” a rotina na montanha.

i50309.jpgA primeira história do livro é sobre a viagem que Negrete fez de bicicleta com dois amigos pela rodovia Transamazônica quando tinha 23 anos e cursava engenharia de alimentos na Unicamp. Esta foi a sua aventura pioneira. Daí por diante, ele partiu para desvendar o mistério das montanhas. Ao lado do amigo Rodrigo Ranieri, Negrete subiu o Aconcágua, na Argentina, o pico mais alto das Américas. A dupla escolheu o jeito mais difícil de fazer isso – trilhou pela Face Sul, caminho temido pelos alpinistas. Do ponto de vista técnico, a escalada do Aconcágua é muito mais complexa do que a do Everest. Sua subida é marcada por desafios concretos a cada 100 metros, ao passo que no Everest o desafio é respirar e manter corpo e mente sãos, já que a falta de ar afeta o raciocínio e a lucidez para tomar decisões.

A extrema altitude foi implacável com Negrete. Ele estava muito confuso e debilitado e por isso precisou da ajuda dos dois sherpas, Dawa e Pechumbi. Falava muito – mas, em português, suas últimas palavras não puderam ser compreendidas. Os registros derradeiros do alpinista foram recuperados de sua câmera de vídeo e estão transcritos no livro. São do momento em que ele chega ao pico: “Eu tô no ponto mais alto do planeta. Subi sozinho e foi animal, muito difícil. (…) Beijos na Marina e nos meus fofitos. Eles é que me dão força nessa vida.”

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