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"Você pode acreditar que minha cobrança pessoal é muito mais dolorosa do que essa da Justiça. Não passa um dia na minha vida em que eu não pense nisso", desabafa a voz feminina ao telefone. “Porque nada acontece por acaso e cada história tem seu motivo. Comigo não é diferente”, completa – e pede para ser esquecida. Professora, 33 anos, M. não quer mostrar o rosto. Nem ela nem outras 25 mulheres que também aceitaram a suspensão de processos nos quais são acusadas da prática de aborto em Campo Grande (MS) em troca de prestação de serviços à comunidade. Tantas outras quantas forem levadas ao juiz Aluízio Pereira dos Santos, da 2ª Vara do Tribunal do Júri, certamente preferirão retornar quanto antes à sua rotina, com um acordo rápido, a prolongar a cicatrização de uma ferida cuja amplitude só elas podem mensurar e, os motivos, entender. Mais duas mil mulheres ainda devem ser chamadas para depor na 1ª Delegacia de Polícia da cidade, em um trabalho que pode levar até dois anos.

Os números impressionam e ganham ares alarmantes se considerada a população de Campo Grande, pouco mais de 700 mil habitantes. Até agora, 29 pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público (MP) e levadas ao juiz, incluindo dois homens e a mãe de uma menor de idade. Com exceção de uma, que compareceu com o filho à audiência, provando não ter praticado aborto, todas optaram pela suspensão do processo em troca de condições impostas pela Justiça. Em junho, a delegada Regina Márcia Rodrigues de Brito Mota iniciou uma nova série de convocações para depoimentos das acusadas. “Estou apenas cumprindo a lei e ela diz que aborto é crime. Ainda que seja um assunto traumático para essas mulheres, não posso deixar de apurar”, afirma o juiz Santos. Ex-escrivão policial e católico não praticante, ele faz questão de ressaltar já ter atuado, como defensor público, em favor de mulheres que abortaram.

Entre os processos, há casos como o de Maria de Lourdes Albino, 32 anos. Ela confirma que, grávida de três meses, esteve na clínica em 5 de março de 2007, mas garante que não fez o aborto pelo qual foi indiciada. Mãe solteira de um casal de gêmeos, Maria quer mostrar o rosto. “Vi a placa ‘Planejamento familiar’ e entrei em busca de orientação. Paguei R$ 120 pela consulta, quando me explicaram que ali era uma clínica de aborto e pediram R$ 8 mil para fazer”, relata. Diarista, com ganhos entre R$ 200 e R$ 300 por mês, foi ridicularizada por sua condição social antes de receber o preço final para o procedimento: R$ 1 mil, desde que pagos à vista. Sentindo-se humilhada, afirma ter ido embora do local. Diz que sofreu aborto espontâneo em decorrência de stress e esforço físico pesados e exibe documentos que confirmam a perda do bebê na Santa Casa, 11 dias depois.

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Todos os abortos teriam sido realizados pela médica Neide Mota Machado e outras oito pessoas, denunciadas e aguardando julgamento, que trabalhavam na clínica aberta há 20 anos na região central de Campo Grande. A Justiça só entrou em ação em março de 2007, após exibição de reportagem da TV Morena, afiliada da Rede Globo. De posse de um mandado judicial, policiais invadiram o local, que funcionava sob a fachada de Clínica de Planejamento Familiar, e encontraram tabelas de preços para o procedimento de aborto. Os valores variavam de R$ 1.800 a R$ 20 mil, de acordo com o tempo da gestação e a condição financeira da paciente. Também apreenderam armamentos e mais de nove mil fichas de mulheres que passaram pela clínica em duas décadas. Desconsiderando os casos de duplicidade, os sem provas conclusivas e os prescritos (realizados há mais de oito anos), sobraram aproximadamente duas mil pessoas para serem investigadas.

Grupos em defesa da mulher sustentam que o processo é todo ilegal sob a argumentação de que as provas, além de insuficientes para a incriminação, foram conseguidas de forma ilícita – as fichas apreendidas e usadas como base para os inquéritos são de acesso particular e exclusivo do paciente e seu médico. O promotor Paulo Passos alega que as provas foram obtidas sob ordem judicial. “A confidencialidade da relação entre médico e paciente não pode ocultar a prática de um crime”, contesta. “Esse é um caso sui generis em termos de documentação da prática de abortos: há o histórico das mulheres, cópias de exames de ultra-som e recibos de pagamentos.”

Mas integrantes da Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso do Sul (OAB-MS) pensam diferente. “As provas são, sim, ilícitas. Aqueles eram documentos particulares”, insiste Delasnieve de Souza, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB. Junto com a advogada Cleusa Spínola, Delasnieve preparou longo parecer e solicitou ao conselho da entidade que agisse em defesa das duas mil mulheres. A idéia é impetrar um habeas-corpus coletivo para interromper o inquérito policial e as ações penais instauradas contra as mulheres. O presidente da OAB-MS, Fábio Trad, prometeu que até a sextafeira 25 divulgará o resultado de uma consulta, em caráter extraordinário, aos conselheiros. “Como presidente, tenho que me submeter à decisão soberana do conselho. Mas, como advogado e cidadão, gostaria que o conselho se manifestasse a favor do socorro jurídico a elas”, diz Trad. “Nenhuma mulher engravida porque quer abortar.”

Operações policiais parecidas com a de Campo Grande ocorreram posteriormente em outras cidades brasileiras, como Limeira (SP) e Porto Alegre (RS), o que torna o transcorrer dos processos em Mato Grosso do Sul determinante no desenrolar de situações semelhantes em outros tribunais do País. No entanto, para Telia Negrão, secretária executiva da Rede Feminista de Saúde, o problema só terá o devido tratamento quando os artigos que criminalizam o aborto forem retirados do Código Penal brasileiro. “A lei atual já se provou ineficaz para impedir o aborto, pois mais de um milhão são realizados anualmente no Brasil”, pondera. “Por outro lado, é de uma eficiência extrema para expor as mulheres a situações de humilhação, degradação e risco às suas vidas.”

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