Bagé, Rio Grande do Sul, abril de 2005. Uma estudante de 14 anos é vítima de estupro. A família vai à delegacia e faz o boletim de ocorrência. Semanas depois, a garota descobre que está grávida. Recorre à Santa Casa de Misericórdia da cidade para interromper a gestação não desejada. Os médicos, porém, se recusam a fazer o aborto. A família consegue uma autorização na Justiça, mas os hospitais da cidade insistem na recusa. Deprimida, a menina sofre aborto espontâneo e é atendida na mesma Santa Casa. Seu sofrimento não parou aí. Ela ainda correu o risco de ser punida pela Justiça, pois uma delegada da cidade, Lisandra de Carvalho, abriu inquérito contra ela. “Se a menina provocou, é infratora, e se a mãe estiver envolvida, responderá a processo criminal”, declarou na ocasião. O caso se encerrou só depois de o hospital constatar que não havia sinais de aborto induzido. A história dessa gaúcha não é incomum no Brasil. Apesar de a lei brasileira autorizar o aborto em casos de estupro ou quando há risco de vida para a mulher, são poucos os hospitais e profissionais de saúde preparados ou que aceitam atender essas mães. Foi o que constatou um dossiê inédito elaborado pela ONG Católicas pelo Direito de Decidir (CDD-Br). “Notamos a hipocrisia e o preconceito até pela dificuldade em conseguir as informações”, afirma a psicóloga Rosângela Talib, coordenadora do estudo.

O aborto é um tema sempre polêmico e gera discussões acaloradas. O levantamento mostra quantos são e como funcionam os serviços de Aborto Legal no Brasil – programa do Ministério da Saúde criado em 1989 para atender aos casos previstos em lei, com equipes multidisciplinares (médico, psicólogo, enfermeiro e assistente social). A conclusão é que essas equipes são poucas e estão presentes apenas em capitais. Cinco Estados nem têm o serviço.

Abismo social – O estudo indica também que ainda há muito o que avançar nessa discussão, sobretudo se compararmos o número de mortes de mulheres causadas por abortos clandestinos, 1,4 milhão (e o que se gasta para tentar salvá-las), e a pequena quantidade de atendimentos do programa, 1,6 mil. “Todos sabem que proibir aumenta o mercado clandestino e o abismo social. Quem pode pagar faz aborto em clínicas seguras e quem não tem dinheiro lança mão de remédios, chás e lugares sem estrutura mínima”, escancara Rosângela.

Neste ano, quando o Ministério da Saúde aprovou norma que desobriga os hospitais de exigir o boletim de ocorrência para prestar atendimento às vítimas de estupro, os ânimos esquentaram. Os contrários à legalização do aborto chegaram a achar que haveria uma corrida de grávidas aos hospitais em busca de aborto gratuito. Não foi o que aconteceu. O número de procedimentos do programa de Aborto Legal permanece estável. Mais do que um grave problema de saúde pública, há aí uma grande questão cultural e ético-religiosa que envolve toda a sociedade. No Congresso Nacional, há dezenas de projetos que tentam trazer o tema à baila, mas a forte resistência de setores mais conservadores da sociedade – sobretudo de religiosos – empata e engaveta a discussão. O lamentável é que, enquanto a discussão fica emperrada, as clínicas clandestinas funcionam a todo vapor. Nas mais chiques, jovens grávidas pagam no mínimo R$ 1 mil para interromper gestações não desejadas.