A publicitária Clarice Herzog passou por muitos momentos delicados depois que o marido, o jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, morreu nos porões da ditadura militar (1964-1985), no sábado 25 de outubro de 1975. Um desses momentos cruciais foi explicar a tragédia aos filhos do casal. À época, o mais velho, Ivo, estava com nove anos. O caçula, André, era dois anos mais novo. “Agora que o Brasil matou papai nós vamos declarar guerra ao Brasil?”, perguntou Ivo. Na hora, Clarice teve de engolir em seco. Os tempos eram de medo e opressão. A versão propagada pelo Exército era que Herzog se suicidara aos 38 anos, numa cela do Doi-Codi, o Destacamento de Operações Internas do Comando Operacional do II Exército, em São Paulo. Logo após o primeiro impacto, Clarice se revelou uma guerreira da mais vigorosa estirpe. Tanto fez que, três anos depois, numa ação ousada e inédita, conseguiu que a União fosse responsabilizada judicialmente pela morte do marido.

Passadas três décadas, ela não se conforma com a perda. Jamais encontrou consolo no fato de o drama de Herzog ter provocado a primeira reação popular contra a arbitrariedade no País. “Vlado contribuiria muito mais para a sociedade se estivesse vivo”, comenta. Naqueles tempos sombrios, a morte do jornalista abortou um golpe dentro do golpe. Num protesto silencioso e contido, mais de oito mil pessoas desafiaram a linha-dura do regime ao participar de ato ecumênico em memória de Herzog na Catedral da Sé, no dia 31 de outubro. Ao final da cerimônia, o arcebispo de Olinda, dom Hélder Câmara, sussurou no ouvido do cardeal dom Paulo Evaristo Arns: “Senhor cardeal, é hoje que começa a derrocada da ditadura militar.”

Os militares voltaram para os quartéis, mas as circunstâncias exatas da morte ainda não foram esclarecidas. Amigo de Herzog, o jornalista Fernando Pacheco Jordão lembra que, naquela ocasião, uma batalha surda era travada entre duas facções das Forças Armadas. De um lado, estava o presidente Ernesto Geisel (1974-1978), empenhado em promover uma abertura política “lenta, gradual e segura”. De outro, estava a chamada linha-dura, disposta a manter o poder a qualquer custo. “Através de Herzog, o pessoal da linha-dura queria pegar o governador Paulo Egydio Martins e o secretário de Cultura José Mindlin”, afirma Jordão. Ele é autor do livro Dossiê Herzog, editado em 1979, que acaba de ser relançado pela Global Editora, antecipando a série de homenagens que marcam os 30 anos do episódio.

Herzog foi o 11º jornalista a ser preso naquele mês de outubro, quando a repressão desencadeou uma truculenta operação contra pessoas vinculadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Desde o começo do mês anterior, quando Herzog assumira a direção da TV Cultura a convite do secretário Mindlin, setores da imprensa a serviço da ditadura passaram a criticar a escolha. O curioso é que o nome de Herzog havia sido submetido ao Serviço Nacional de Informações (SNI), o órgão que vasculhava a vida dos adversários do regime.

“Disseram que não havia problema nenhum”, relembra Mindlin no documentário Vlado – 30 anos depois, do cineasta João Batista de Andrade, que estréia nos cinemas neste final de setembro. Atual secretário de Cultura de São Paulo, Batista de Andrade estava entre os muitos amigos de Herzog que ficaram atônitos com a sua morte. “Eu, que filmava tudo, não filmei nada naquele momento”, diz. “O clima político era quase irrespirável.” No longa-metragem, o cineasta volta ao passado, refazendo a trajetória de Herzog e a realidade de sua época.

O jornalista Paulo Markun é um dos personagens que ajudam a recompor essa história. Então chefe de reportagem da TV Cultura, Markun estava encarcerado havia nove dias no mesmo Doi-Codi quando Herzog chegou. “Fazíamos tevê pública, preocupados com questões sociais, mas, obviamente, não tinha nada de subversivo”, diz ele. Autor do livro Vlado, editado em 1985, Markun lança no mês que vem uma nova obra sobre o amigo: Meu querido Vlado – a história de Vladimir Herzog e do sonho de uma geração, pela editora Objetiva. No relato, questiona o silêncio dos órgãos governamentais sobre o episódio. Para Markun, enquanto os arquivos da repressão continuarem trancados, não se saberá exatamente o que aconteceu naquela cela do Doi-Codi. Será que Herzog, irritado por ter de assinar uma confissão, teria rasgado a mensagem, aguçando a ira dos torturadores? Será que sucumbiu por se recusar a delatar Mindlin ou o governador?

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Em sentença histórica responsabilizando a União pela morte, em outubro de 1978, o juiz federal Márcio Moraes pediu a apuração da autoria e das condições da morte. Nada foi feito. Hoje desembargador, Moraes conta que estava havia apenas dois anos na magistratura quando o juiz encarregado do processo, João Gomes Martins Filho, foi sumariamente afastado do caso. Como estava às vésperas da aposentadoria, o regime temia que Martins Filho desse uma sentença favorável à família de Herzog. Um juiz em começo de carreira, em plena vigência do AI-5, o decreto que suspendera todas as garantias constitucionais, seria mais “confiável”.

Com o processo em mãos, Moraes tirou férias e se trancou em casa. Em outubro de 1975, ele participara do ato ecumênico por Herzog a distância, de uma pastelaria, num canto da praça da Sé, tomada pelas pessoas que não conseguiram entrar na catedral superlotada. Três anos depois, ao proferir sua sentença, Moraes revelou sua própria evolução. “Eu não podia passar a vida de forma velada, na esquina, comendo pastel”, afirma. A decisão, que derrubou a farsa do suicídio, foi um bálsamo para a família de Herzog, de origem judia, que fugira do nazismo na antiga Iugoslávia e se escondera numa cidadezinha italiana antes de imigrar para o Brasil, em 1946. Na Itália, com apenas sete anos, Herzog aprendeu rápido o novo idioma e era apresentado como Aldo. Para mascarar a origem, seu pai passava-se por mudo. Certa vez, uma autoridade perguntou ao pequeno Vladimir Herzog por que ele se chamava Aldo e estava usando uma camisa com a letra “V”. “É de meu primo, Victor”, inventou o garoto, escapando da perseguição. No Brasil, ele não teve chance.


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