O telefone tocou na sexta-feira 16 de setembro e o pernambucano Salvio Barbosa Vilar, apesar de estar na cadeia, ouviu as primeiras congratulações. “Tudo o que você falou está se confirmando”, reconheceu, do outro lado da linha, o deputado federal Moroni Torgan (PFL-CE), presidente da CPI do Tráfico de Armas. Seguiram-se outros telefonemas, um deles de um delegado da Polícia Federal. No dia anterior, a PF no Rio de Janeiro comemorara a apreensão recorde de 1,6 tonelada de cocaína escondida em 50 quilos de bucho de boi, derrubando, num efeito dominó um esquema envolvendo transportadoras, frigoríficos e restaurantes chiques. E, de quebra, um fato raro no noticiário policial brasileiro: gente do high society sendo presa. O feito só foi possível porque Salvio entregou informações fundamentais para desbaratar uma quadrilha internacional de tráfico de drogas formada por personagens até então insuspeitos, que trocaram as colunas sociais pelas páginas policiais. Entre as sete pessoas detidas estão o português José de Palinhos Jorge Pereira e sua ex-mulher, a psicóloga Sandra Tolpiakow, sócia das redes de restaurantes Satyricon e Capricciosa, pontos de encontro dos ricos e famosos do Rio. Preso em um cubículo da Delegacia Anti-Sequestro (DAS) no Rio, ameaçado de morte e vendo a família encolher na velocidade de suas denúncias – já perdeu três filhos, a ex-mulher e um primo –, Salvio só não tem o que comemorar, apear de gozar de privilégios como acesso ao telefone e até ao pátio da cadeia, onde costuma lavar carros.

Expõe o esquema de caminhões frigoríficos de empresas de grande porte, como Sadia e Michelon, que são usados para levar a droga até os grandes centros. “Uma fiscalização rigorosa nas carretas que abastecem Rio, São Paulo e Minas representaria um grande golpe no tráfico internacional”, diz ele. Essa simples providência também é prescrita para portos e aeroportos por onde passam os alimentos com destino ao Exterior. Entre os policiais que o guardam, Salvio é tratado de Falecido. Entre congressistas e delegados federais, ele é o informante que pediram aos céus. Ex-caminhoneiro, participou por quase seis anos de um esquema de roubo de caminhões e tráfico de armas e drogas organizado por policiais paulistas. Fala com conhecimento de causa, como revelou a ISTOÉ em novembro de 2004: “Essa quadrilha é apenas a ponta de um grande iceberg. Você ainda vai ver cair muita gente grande, gente que você nem sonha”, prevê.

A investigação confirmou que o modus operandi dos traficantes segue exatamente o esquema que Salvio revelou à PF e às cinco CPIs da qual participou: da base de distribuição nas grandes fazendas e frigoríficos de Goiás, a droga segue em caminhões para as principais capitais brasileiras e para a Europa. “Jamais uma carreta de grande frigorífico é parada na estrada, jamais”, afirma ele, destampando um esquema que passa por corrupção policial, conivência de juízes e apoio de políticos. Por isso, não se surpreendeu com o efeito colateral da Operação Caravelas: o sumiço na madrugada de segunda-feira 19, dentro da PF no Rio, de R$ 2,1 milhões, em dólares e euros, apreendidos com os traficantes. O furto motivou o afastamento de 59 policiais da superintendência do Rio e uma investigação que está sendo acompanhada de perto pelo diretor da PF, Paulo Lacerda. Até o final da semana, o dinheiro continuava sumido. “O suporte da quadrilha é formado por deputados federais, estaduais, juízes, delegados e vários policiais”, lista. O cabeça do esquema, diz ele, não é o português Palinhos, mas um empresário chamado Turco, que tem negócios em Goiânia – entre fazendas, hotéis e participação na transportadora Araguaina. É o próximo alvo da PF, antecipa. Quem conhece O Falecido, aposta que está certo. Ele recebeu ISTOÉ para contar como se tornou o “garganta profunda” da polícia e congressistas e como, a cada nova revelação, sua vida parece valer menos.

ISTOÉ – Como se envolveu com traficantes internacionais?
Salvio Barbosa Vilar –
Estava preso desde 1991 por roubo de carga na
Penitenciária de Hortolândia (SP) quando o pessoal do Departamento de Investigações sobre Crimes Patrimoniais (Depatri) conseguiu uma fuga pra mim. Custou US$ 5 mil. Eles precisavam de um caminhoneiro para entregar mercadorias roubadas e fui recrutado pela própria polícia. Apreendiam cargas e revendiam para grandes empresas. Me infiltraram nas quadrilhas, eu levantava os galpões onde guardavam as cargas e eles apreendiam e revendiam. Levava de arroz a televisão, de celular a pó. A polícia apreendia 300 quilos de cocaína, apresentava 100 quilos para a imprensa e o resto era revendido. Cheguei a levar carregamentos valendo
R$ 2 milhões na minha carreta.

ISTOÉ – Onde começou a desvendar
esse esquema?
Salvio –
Comecei a denunciar essa quadrilha na CPI do Roubo de Cargas. Contei das fazendas e dos frigoríficos de Goiás, dos caminhões levando duas toneladas de cocaína por mês ao Rio, dos restaurantes de fachada. Se quiserem interromper a entrada de armas e drogas no Rio, é só fiscalizar as estradas e parar as grandes carretas. Jamais uma carreta de grande frigorífico é parada na estrada, jamais.

ISTOÉ – Qual o seu papel nessa quadrilha?
Salvio –
Eu entregava as cargas e também me infiltrava nas quadrilhas. Em Goiás, fiquei durante um ano em fazendas da empresa Araguaina, próximo de Goianira (GO), perto de dois frigoríficos. É um conjunto de cinco fazendas muito grandes. Ali a droga é embalada e depois desce para os grandes centros em caminhões frigoríficos de grandes empresas como Sadia e Michelon, como vi ser feito. Desde a CPI do Narcotráfico eu digo: o que abastece o Rio, São Paulo, Minas, o Nordeste são essas transportadoras.

ISTOÉ – O high society carioca se chocou ao descobrir que seus restaurantes favoritos serviam para lavar dinheiro do narcotráfico. Isso é surpresa para você?
Salvio –
É a elite que sustenta o tráfico. E não são só restaurantes. Existem outras coisas que vão vir à tona, supermercados, motéis, hotéis. O que quebraram agora é só a pontinha do iceberg. Se a Polícia Federal continuar, vai estourar o resto do iceberg. Você ainda vai ver cair muita gente grande, gente que você nem sonha.

ISTOÉ – Que gente grande?
Salvio –
Políticos, policiais, juízes, mas não posso dizer o nome senão aí que minha vida não vale mais nada.

ISTOÉ – É possível um esquema desses funcionar sem o envolvimento
do poder público?
Salvio –
Claro que não. O suporte da quadrilha é formado por deputados federais, estaduais, juízes, delegados e vários policiais. Sem isso, nenhuma quadrilha funciona.

ISTOÉ – Quem é o cabeça do esquema?
Salvio –
O cabeça é o Turco, um cara de Goiânia. Não chegaram nele ainda. Ele é dono de vários hotéis no centro de Goiânia, perto do Parthenon Center, de fazendas em Goianira, tem uma ponta dentro de uma grande empresa de transportes que é a Araguaina. Um dos donos da Araguaina é um dos cabeças do negócio. O português que pegaram (José de Palinhos Jorge Pereira) é só um empregado.

ISTOÉ – Por que o sr. continua denunciando tudo isso?
Salvio –
Pelo que sobrou da minha família. Eu já tenho cinco pessoas mortas. O último filho meu, de 27 anos, mataram há dois meses. Ele foi seqüestrado, executado e seu corpo ainda não apareceu.

ISTOÉ – O sr. vinha sendo chamado dentro da cadeia de Falecido, tantos são os que querem eliminá-lo. Ainda faz juz a esse codinome?
Salvio –
Agora já estou morto de vez.