Um belo dia, um escritor gaúcho tem a oportunidade de trocar a solidão de Porto Alegre pela de Londres. Nada mau para quem já passou dos 50 anos e não acha interessante ter como projeto de envelhecimento “correr menos riscos até a vida se tornar inofensiva”. Esta é a arrancada estilística do novo livro de João Gilberto Noll, Lorde (Francis, 114 págs., R$ 32), coalhado de impermanências. Nesta bela obra, o autor se supera no exercício de desfazer os vínculos formais com a literatura, uma das características de suas tramas, como acontece em Harmada, Berkeley em Bellagio ou Mínimos, múltiplos, comuns. Mesmo parecendo tomado pela embriaguez, o narrador da história não deixa que os fatos sufoquem totalmente seu cotidiano. Ele dá continuidade à vida. O caos não é completo. Mas o leitor só encontra redenção na última página, quando pelo menos tem a certeza de que tudo acabou – e daquele jeito. Antes, terá de trafegar entre a incerteza e a abstração de um protagonista amnésico e sem a menor intenção de colaborar para que algo o devolva a si mesmo.

A história mostra um homem desejoso de alterações em sua vida, mas certamente imobilizado pela própria natureza. Ficaria feliz se fosse raptado. Porém, o que acontece é bem mais excitante: um inglês oferece passagem, hospedagem e determinada quantia para que se mude para Londres. Tal oferta se deve aos sete livros que ele publicou. Só que o motivo exato da viagem é totalmente obscuro. Se o objetivo já não tinha importância quando ele ainda estava em Porto Alegre, imagine ao se ver na cidade do Big Ben, com um apartamento bem aquecido, viajando num daqueles típicos ônibus urbanos – no segundo andar, claro – e parando no Museu Britânico, o mesmo cuja biblioteca era frequentada por Rimbaud. Apesar do imponderável, ele tinha uma certeza: estava no lugar que queria e dali não sairia por nada deste mundo.

Com humor, Noll alivia o clima de impasse enquanto os fatos se sucedem. Um homem morre nos braços do protagonista, outro se atira ao Tâmisa e um terceiro, Mark, resulta numa ótima noite de amor. Ele é internado num hospital por motivos ignorados e seus delírios levam a crer que morreu. O ciclo se fecha em Liverpool, onde o narrador recebe convite para ser professor de português numa universidade. João Gilberto Noll, um lorde da aflição bem administrada, brinda o leitor com mais uma obra de peso.