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DUPLA PUNIÇÃO
Hélio dos Santos já perdeu a filha Juliana.
Poderá agora perder também a liberdade

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Contemplados em todos os textos legais e códigos de ética do País, como de fato devem sê-lo numa democracia, o direito à vida e o direito à liberdade religiosa ainda não convivem em harmonia quando se encontram em hospitais e o paciente ou seus familiares professam a religião Testemunhas de Jeová – o impasse, insolúvel, ocorre quando o procedimento médico requer a transfusão de sangue, método rejeitado por essa seita. Em um caso inédito, na quinta-feira 18 o Tribunal de Justiça de São Paulo mandou a júri popular, sob a acusação de homicídio intencional, Hélio dos Santos e Ildemir de Souza, pais da adolescente Juliana Bonfim da Silva: ela morreu em 1993 no Hospital São José, na cidade paulista de São Vicente. Tinha 13 anos, era portadora de anemia falciforme e, segundo os especialistas que a atenderam, seus familiares não autorizaram que fosse submetida à transfusão. Na mesma decisão, o tribunal determinou que o médico José Augusto Diniz, amigo da família e igualmente membro da mesma doutrina , também se sente no banco dos réus uma vez que teria influenciado na decisão dos pais de Juliana (eles não atendem a imprensa e Diniz, procurado por ISTOÉ, recusou-se a falar). Médicos recorrerem à Justiça em busca de aval para transfundir pacientes ou responderem, eles próprios, a processos de familiares porque realizaram o procedimento sem consentimento é fato bastante frequente. A novidade, agora, é que pela primeira vez o Ministério Público denuncia uma família porque teria dito não ao tratamento.

Ainda que continuem existindo na comunidade médica inúmeras indagações sobre qual é o momento-limite em que uma transfusão se torna imprescindível, o certo é que o pano de fundo dessa questão ganha tons pouco científicos e muito dogmáticos quando envolve religiosidade. Baseadas nos livros do Antigo Testamento “Gênesis”, “Levíticos” e “Atos”, testemunhas de Jeová creem que uma pessoa que receba sangue de outra se torne impura. Assim, para tal crença, de que adiantaria o fiel sarar de uma doença com transfusão se então passaria a viver “de forma indigna perante Deus”? Há, no entanto, outra questão, agora no campo laico: não tem o Estado o dever de garantir o direito à vida? “Há muitos hospitais que fazem tratamentos sem sangue. “A Bíblia” já predisse que sangue é fonte impura”, diz Walter Freoa, ancião superintendente das Testemunhas de Jeová. “A transfusão é um procedimento extremo, mas muitas vezes imprescindível para salvar o paciente. A sua melhora vai depender, porém, da causa da anemia”, explica o chefe da disciplina de Clínica Médica da Universidade Federal de São Paulo, Paulo Olzon Monteiro da Silva. “O direito à vida é um fundamento essencial. É óbvio que a religião e a liberdade religiosa não podem se impor ao direito fundamental à vida”, diz o jurista Fábio Konder Comparato, professor emérito da Universidade de São Paulo.

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A Constituição brasileira prioriza a vida em sua racionalidade. Por outro lado, nenhuma religião, por mais fundamentalista que seja (à exceção dos Estados terroristas), defende que pessoas morram sem que se tente salvá-las – nunca se viu, por exemplo, testemunhas de Jeová dizerem que preferem um parente morto à transfusão de sangue. Lutam pelo seu dogma com argumentos tangenciais que vão de “tratamentos alternativos” a “foi feita a vontade de Deus”. Assim, no caso dos pais da garota Juliana, podiam os médicos do Hospital São José terem feito o procedimento, se o entendiam inevitável, com ou sem autorização da família. E foi o próprio desembargador Francisco Bruno, que embora tenha mandado a júri popular os pais e o amigo da adolescente morta, quem tocou nesse ponto nevrálgico em seu voto. Tanto o Código Penal quanto o Código de Ética Médica dão abrigo aos profissionais de saúde para agirem soberanamente quando é “iminente o risco de morte” – e no caso de Juliana a urgência foi atestada pelos próprios especialistas que a atenderam. Outro caminho a seguir, se queriam se sentir mais resguardados, era o de recorrer ao Poder Judiciário.

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Tudo isso mostra, no entanto, que o tema está longe de ser consensual. No ano passado, por exemplo, o juiz Marco Antônio Castelo Branco não autorizou transfusão em uma mulher adulta com base na inviolabilidade do direito de consciência e crença. “Mas eu autorizaria numa criança, mesmo os pais sendo contra, porque ela não pode se auto-determinar”, diz o magistrado. Já em São Paulo, um médico do Hospital das Clínicas, centro de referência em atendimento de emergência, foi processado porque transfundiu um paciente das Testemunhas de Jeová, contra a sua vontade, para salvar-lhe a vida. A ação penal só foi trancada sob alegação de que o médico, se não agisse como agiu, incorreria em crime de homicídio e omissão de socorro. Na defesa dos pais de Juliana, o criminalista Alberto Zacharias Toron valeu-se de sua vida particular para comprovar que o médico é soberano. No nascimento de um de seus filhos, sua esposa queria a todo custo o parto natural. Como o bebê demorava a nascer, o médico, sem consultar ninguém, decretou: “Há risco de vida, será cesariana.” É o que os especialistas do Hospital São José poderiam ter feito. Nada garante que conseguiriam salvar Juliana. Mas com certeza seus pais não estariam hoje na condição de réus por assassinato.

Colaboraram: Luciani Gomes e Luiza Villaméa


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