Agora, sim, parece que ele veio para ficar. Esperou por isso 478 anos. Fez a sempre arriscada travessia do Atlântico. Mas já se pode anunciar que “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel, enfim se popularizou como livro de autoajuda. Essa é a prateleira que agora ele ocupa em livraria de aeroporto, na plácida companhia de títulos que prometem promoções quase diárias sob um chefe que de repente não sabe mais dar um passo sem ouvi-lo ou o jeito infalível de segurar o timão de uma empresa como se manobrasse em vento aberto um veleiro oceânico, pronto para tudo.
Vindas de um passado remoto, em que essas indulgências ficavam por conta da Igreja, as pilhas cada vez mais altas de “O Príncipe” dominam as platitudes do mercado da autoajuda como torres de castelo florentino. O livro ganhou uma edição caprichada, dessas que não fazem feio em nenhuma mochila de executivo. Traz

o selo da Laselva Negócios. Na capa, sorri o jovem Maquiavel, iluminado por uma luz que lhe cai do alto na testa como inspiração divina. Tem os olhos bem abertos. A boca bem fechada. Dizem as vendedoras que “O Príncipe” tem saído muito, o que no mínimo é um sinal de maturidade para a aviação comercial. Não faz tanto tempo assim, as ansiedades de quem estava prestes a embarcar eram de outra ordem.

Os passageiros queriam então saber antes de mais nada se, após decolar, o mais pesado que o ar ficaria mesmo lá em cima até o fim da viagem. Para isso, a melhor companhia de poltrona era uma leitura que os fizesse pensar em outra coisa. Ou pensar em nada. Agora, não. O acidente aeronáutico parece relegado ao último plano na ordem natural das preocupações terrenas. Urgente agora é sobreviver ao desembarque. Preparar-se para o que virá depois dos atrasos de praxe, dos desvios de rota, das conexões labirínticas e das bagagens esquecidas pelo caminho.

Lá no fim disso tudo é que está o perigo. Na hora em que o avião depositá-lo diante da mesa onde a alta administração aguardará desculpas plausíveis para a turbulência da agenda. Não bastará dizer, como dizia o barnabé de Paquito, Gentil, Estanislau Silva e Artur Vilarinho na marcha carnavalesca de 1941, do tempo em que essas atribulações só andavam de trem, “Patrão, o voo atrasou…”.

É aí que entra Maquiavel. Se os passageiros temem que o avião chegue lá e eles não, eis um autor de fato curtido em fracassos. Encarou prisão, tortura e degredo. Na pindaíba, vendeu as árvores de um bosque herdado do pai na Toscana, como faria hoje qualquer posseiro da Amazônia. No serviço público, acumulou fiascos diplomáticos e humilhações militares. Coproduziu um clássico da malversação de talentos, ao planejar com Leonardo da Vinci o desvio do rio Arno, para secar a resistência de Pisa ao cerco florentino. Foi em vida um trapalhão admirável, o bom e velho Maquiavel. Faltou-lhe, talvez, um livro de autoajuda. Por isso mesmo é bem-vindo ao mundo da banalidade cotidiana, como novo especialista em manuais de autoajuda. Não só porque melhora instantaneamente a qualidade literária do gênero, mas porque tira do limbo da ciência política renascentista um livro que todo mundo deveria ler, e não os candidatos a qualquer coisa.

Maquiavel é o primeiro a ensinar como se sobe na vida fazendo o que ele não fez. Longa vida de sucesso a Maquiavel nas bancas de aeroporto.

Marcos Sá Correa é jornalista e editor da revista Piauí