Os jornalistas podem ser alvos da ciranda de grampos e averiguações telefônicas que roda pelo Brasil. O delegado da Polícia Federal
de Brasília Francisco de Assis Guimarães Sobrinho assim se remeteu ao Tribunal Regional Federal de São Paulo (ofício 318/2003): “(…) entendemos (…) a necessidade de averiguação de ligações telefônicas entres aqueles que tinham o conhecimento dos documentos sob sigilo (…) e os jornalistas que obtiveram esses dados e os reproduziram publicamente por intermédio de todos os meios de comunicação.” Os documentos aos quais o ofício se refere são da chamada Operação Anaconda: aquela que grampeou e denunciou juízes, advogados, policiais e empresários como supostos integrantes de uma suposta quadrilha de venda de sentenças – chegando a confundir vozes e números de telefones, denunciando um morto e levando por 11 dias um inocente para a cadeia.

A “averiguação de ligações telefônicas” daqueles que poderiam estar “vazando” e reproduzindo informações incluiria automaticamente não apenas os jornalistas, mas também representantes do Ministério Público e até os próprios policiais – enfim, todos os envolvidos na operação poderiam potencialmente ser os informantes. Necessariamente, também os advogados teriam de ser averiguados. Assim, o direito constitucional do jornalista ao sigilo de fonte e o direito constitucional do advogado ao sigilo de comunicação com o seu cliente estariam sepultados. Detalhe: advogado grampeado fere o mais elementar do direito à ampla defesa. Pode-se argumentar que o delegado tentasse dessa forma impedir a execração pública dos grampeados. Pode-se argumentar que também nessa linha poderá seguir o anteprojeto do Ministério da Justiça que agora se envia ao Congresso. O anteprojeto vai para votação após o caso de espionagem envolvendo a agência internacional Kroll, no qual foram grampeados telefones e interceptados e-mails. O anteprojeto tenta colocar chão firme na areia movediça que é a Lei de Interceptação (9.296/96) ao ditar parâmetros mais claros e restritivos para que o grampo seja autorizado – e isso é bom. Mas num ponto o anteprojeto continua patinando: o de punir com até quatro anos de reclusão quem revelar o conteúdo de interceptações que estejam sob segredo de Justiça.

A casca de banana que está sob os pés do anteprojeto é a seguinte: se mesmo com a imprensa divulgando erros nos grampos, grampos e erros continuam ocorrendo, o que aconteceria se não houvesse tal divulgação? Detalhe: geralmente são os próprios responsáveis pelas escutas que se autodetonam na Justiça ao dizerem que não têm certeza dos fatos que imputaram aos grampeados. Punir a imprensa pela divulgação significa melhorar a acuidade auditiva dos que ouvem as conversas? Vozes e nomes deixarão de ser trocados? As conversas deixarão de ser editadas por quem as ouve e serão apresentadas na íntegra à Justiça, coisa que hoje não acontece? Juízes deixarão de determinar interceptação direta por 30 dias enquanto a lei prevê no máximo 15 dias, renovável por igual período de tempo? Mudar a lei é bom porque pode brecar a arapongagem, mas apenas mudar a lei não implica aumentar a responsabilidade dos que escutam as conversas. E aí entra a importância da imprensa: a de mostrar que muitas vezes aqueles que são grampeados nada têm a ver com atividades criminosas e que as conversas escutadas não coincidem com o que é transcrito no papel. Eis alguns casos cuja publicidade jornalística convém ao Estado Democrático de Direito:

• Ofício 174/2002 do juiz federal Sebastião José Vasques de Moraes ao gerente-geral da TIM: “Solicito (…) a prorrogação da interceptação da linha celular 9977… pelo prazo de 30 dias (…) solicito também a interceptação por igual prazo (…) da linha celular 9902…” Do mesmo juiz para a BCP (ofício 175): “Solicito (…) pelo prazo de 30 dias a interceptação da linha celular 9331…”

• O celular 9648… foi grampeado pela PF como sendo do juiz federal João Carlos da Rocha Matos. Esse celular é de José Orlando Miranda Ribeiro, conforme depoimento do próprio Miranda ao Tribunal Regional Federal de São Paulo.

• Lourenço Rommel foi envolvido em suposta corrupção no Ministério da Saúde investigada com interceptações de telefones e de e-mails. Foi preso temporariamente com base em relatório de grampos da PF. Segundo o relatório, Rommel já havia sido condenado por quadrilha especializada em cobrar propinas dos fornecedores da Ceme. Em seu depoimento à Justiça, o delegado da Divisão de Inteligência da PF Rafael Oliveira, responsável pelos grampos, admite que a “checagem da informação foi posterior ao relatório que serviu de base ao pedido de prisão”. Da checagem resultou que Rommel não possui essa condenação. Mais ainda. O delegado diz: “(…) nas conversas interceptadas, os acusados Luiz Cláudio e Manoel Pereira não tiveram seus nomes mencionados por inteiro (…), relacionou os apelidos Brinquinho e Careca ao acusado Luiz Cláudio porque a fotografia no passaporte indicava a utilização de brinco e que era calvo (…), relacionou o apelido Maneco ao acusado Manoel porque é comum atribuir tal apelido às pessoas de nome Manoel.”

• O empresário Vagner Rocha foi denunciado com base em grampo no chamado Caso Centauro (atuação ilícita envolvendo um estrangeiro no Brasil). O laudo 1.619/04 do Instituto Nacional de Criminalística diz que a voz atribuída a Vagner Rocha não é a dele.

• Norma Regina Emílio Cunha, ex-mulher do juiz João Carlos da Rocha Matos, gravava por conta própria as suas discussões com o ex-marido. Nas gravações se ouvem falas de desavenças e ciúmes, conversas pessoais e passionais, acusações baseadas em seu ressentimento de mulher traída. Essas são as fitas que a PF apreendeu e que estão sendo usadas para incriminá-la. Detalhe: um dos mais destacados princípios constitucionais do Brasil é que ninguém é obrigado a produzir prova contra si próprio. Assim, as fitas gravadas por Norma não podem ser utilizadas contra a própria Norma.

É importante e urgente uma lei que ponha ordem nas interceptações. Mas a imprensa não pode pagar o pato se a arapongagem continuar a piar, nem a sociedade pode ficar desavisada se algum araponga desafinar.