"Depois de sitiar o vilarejo todo de Kaileck, eles separaram os homens das mulheres. Os janjaweed escolheram as mulheres mais belas. Quatro homens me estupraram durante dez dias seguidos. Diariamente, as mulheres do vilarejo eram levadas para a mata, onde eram violentadas. Parecia não ter mais fim.” O relato chocante saiu quase aos sussurros. Khadija, 35 anos, vive atemorizada, trancada em uma sala de aula. Não quer mais voltar a Kaileck, sua cidade natal. E, se voltasse, onde iria morar, se o local foi reduzido a cinzas? Essa é a situação de mais de um milhão de refugiados sudaneses que vivem a pior crise humanitária do mundo, segundo o próprio secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, que visitou o país no mês passado. Mais de 150 mil refugiados correm o risco de morrer estorricados nas areias do país vizinho, o Chade. Os janjaweed que estupram, roubam, saqueiam, incendiam cidades inteiras são milícias árabes muçulmanas que atacam a região de Darfur, a Oeste do país, com o aval descarado do presidente sudanês Omar el Bashir. De acordo com a ONU, desde o início do conflito, no ano passado, já morreram 50 mil pessoas. Genocídio foi a palavra usada na semana passada pelo Congresso americano. O secretário de Estado americano, Colin Powell, que visitou Darfur ao lado de Kofi Annan, evita o termo. Até porque ele significaria a intervenção imediata e direta da comunidade internacional. Mas então o que fazer no inferno sudanês?

No último dia 30 de julho, o Conselho de Segurança da ONU aprovou, por 13 votos a zero, uma medida impondo sanções econômicas, caso o governo não atenda às seguintes demandas no prazo de um mês: desarmar as milícias árabes, dar acesso às organizações humanitárias para agir na região e sentar à mesa de negociação com os dois movimentos rebeldes negros de Darfur, o Exército Libertação do Sudão (ELS) e Movimento de Igualdade e Justiça (MVJ). Mas nem todos os países do CS se alinham com os Estados Unidos. A Rússia votou contra a decisão de impor sanções, porque vende armas ao governo sudanês. O Paquistão se absteve, por ser um país de governo muçulmano, e a China, por ter empresas que exploram petróleo no Sudão. O presidente El Bashir, que nega a catástrofe, afirmou que o Ocidente quer intervir pelo único interesse de explorar as ricas reservas de ouro e petróleo no Sudão. O fato é que as sanções econômicas poderão agravar ainda mais a catastrófica situação de um país despedaçado, que está praticamente em conflito interno desde sua independência, em 1956. A principal guerra que aflige o Sudão opõe o norte muçulmano contra o sul cristão e já matou dois milhões de pessoas. Já a investida árabe em Darfur é um conflito étnico que teve início no ano passado, quando rebeldes negros atacaram propriedades do governo, acusando-o de negligenciar a maioria negra e proteger os árabes. Os que se autodenominam árabes são descendentes dos beduínos das savanas que investem contra a população negra de Darfur. Em 1980, muitos deles migraram para a Líbia e se uniram à Legião Islâmica de Muamar Kadafi. O governo islâmico nega, mas a idéia é dizimar os negros para instituir a chamada “supremacia árabe”. Árabes da capital, Cartum, distribuem panfletos convocando muçulmanos de todo o mundo para essa “jihad africana”.

A primeira razão para o conflito de Darfur é óbvia: a constante repressão do governo sudanês, que representa a maioria árabe muçulmana, contra a população negra minoritária, que é cristã ou animista. A segunda, pouco comentada, é que, na região de Darfur, os rebeldes negros exigem acesso às três reservas petrolíferas – Abiei, Nilo Azul e as Montanhas Nuba. Esses rebeldes negros ficaram de fora das conversações entre o governo e os rebeldes cristãos do sul, que aconteceram há dois meses no Quênia. Os observadores internacionais temem que a rebelião de Darfur seja uma estratégia dos rebeldes negros para forçar uma intervenção militar do Ocidente. O Reino Unido já colocou cinco mil soldados à disposição. Mas esse número mostra-se irrisório diante do vasto território sudanês, que tem quase o tamanho da França. Além disso, nos últimos 20 anos, não houve policiamento em Darfur e os rebeldes se armaram até os dentes. Hoje, são apenas 300 soldados da Nigéria e da Ruanda, sob o comando da União Africana (UA), que patrulham os vilarejos. Aliás, talvez a solução mais razoável seja o apoio financeiro à paupérrima UA, no momento a organização africana que tem mais credibilidade para agir em Darfur. Os soldados africanos podem ser mais bem-recebidos pelos sudanenes do que os brancos do Ocidente.

Mas, enquanto nenhuma atitude é tomada, 300 mil pessoas podem morrer à míngua. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), elas estão sujeitas às epidemias de cólera e malária. Com a temporada de chuvas que começou nesta semana, será ainda mais difícil levar ajuda humanitária pelas estradas esburacadas de Darfur. O governo ainda boicota os poucos caminhões que chegam com toneladas de alimentos e remédios. As agências humanitárias calculam que não possuem nem 40% do orçamento necessário para atender as vítimas dessa complicada guerra civil. Em menos de dois meses, dez mil pessoas foram aniquiladas, deixando milhares de crianças órfãs. Está claro que, para socorrer o Sudão, o primeiro passo é uma resolução política. Demorou, mas, diante de tantas atrocidades, o Ocidente despertou para pressionar o regime sudanês. Nas décadas de 80 e 90, o mundo deparou-se incontáveis vezes com o horror das imagens de refugiados etíopes, somalis e ruandenses apodrecendo na desgraça. Motivo suficiente para não repetir a hesitação de intervir.