Doutor em comunicação e integrantedo Conselho de DesenvolvimentoEconômico e Social diz que ogoverno não sabe ouvir críticas

A sequência de denúncias publicadas pela imprensa tendo como alvo altos figurões da República causou revolta no presidente Lula e em vários ministros. No lugar dos personagens envolvidos nas irregularidades, a ira das autoridades federais se voltou contra os jornalistas que revelam essas histórias. Reportagens desse tipo ganharam dos integrantes do Executivo um apelido pejorativo: denuncismo. Doutor em comunicação social e professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o baiano Muniz Sodré, 62 anos, autor de 26 livros e conhecido como crítico rigoroso da mídia brasileira, discorda completamente. A começar pela denominação escolhida pelos governistas. “Se o regime de quem ocupa a Presidência é o presidencialismo, o conjunto de denúncias deveria ser chamado de denuncialismo, e não denuncismo”, corrige. O professor acredita que uma das mais importantes funções da imprensa é justamente denunciar e revelar os bastidores do poder. Se as acusações estão surgindo com maior frequência, Muniz Sodré tem para o fato uma razão quase aritmética. “Efetivamente, tem havido muitas denúncias. Mas isso acontece porque a corrupção se alastrou no espaço público, no serviço público”, avalia.

A opinião de Muniz Sodré tem importância reconhecida pelo governo. Ele integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – um grupo de 80 notáveis de várias áreas de atuação que discute os assuntos mais importantes do País e assessora o presidente da República. Na condição insuspeita de quem votou em Lula na última eleição, o mestre identifica na posição das autoridades federais um sinal de que o PT, ao chegar ao poder, tornou-se um partido de centro. “Falta saber se de centro-esquerda ou centro-direita”, ironiza. Nesta entrevista, o professor elogia ainda a reação do ex-deputado Ibsen Pinheiro, que, mesmo tendo sofrido bastante com um erro de imprensa, discorda de qualquer iniciativa de censura. “Eu o vejo como modelo de homem público, do ponto de vista ético.”

ISTOÉ – O sr. acha que o presidente Lula e alguns ministros têm razão ao reclamar de uma onda de denuncismo na imprensa brasileira?
Muniz Sodré

Uma das funções da imprensa é denunciar, mesmo que a palavra pareça feia ou pesada. A imprensa surge expandindo o artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que trata da valorização dos direitos civis. Principalmente, direito de desocultação. Ou seja: direito de tornar visível aquilo que o poder, o império, pretendia manter invisível. A grande expansão do prestígio do jornalismo se deve a essa desocultação. Assim, é possível conhecer os mecanismos de decisão e não mais haverá o segredo da antecâmara do palácio do rei. É um direito público reivindicar que nada fique oculto, que tudo se torne transparente. Há uma acusação de certo conluio do jornalismo com o Ministério Público. Se existe esse conluio, é uma coisa espúria. Mas, a rigor, a imprensa tem funções que cabem ao MP. E a principal delas é a de denunciar.

ISTOÉ – ia para tomar decisões. Reclama que são informações precipitadas, que achincalham as pessoas e depois não se prova nada e ninguém se desculpa por isso. A imprensa tem sido tão irresponsável?
Muniz Sodré

Efetivamente, tem havido muitas denúncias. Mas isso acontece porque a corrupção se alastrou no espaço público, no serviço público. Não é uma falha da imprensa. Cabe ao denunciado dizer se aquilo é ou não verdade. Por outro lado, não creio que seja função da imprensa, nem no passado nem hoje, dar sabedoria ao governo, como quer o presidente. Ao contrário. A imprensa está aí para avaliar a sabedoria do governo. Cabe ao governo agir sabiamente e cabe ao jornalismo e ao povo avaliar. Se a imprensa está fazendo isso bem ou mal, é um outro problema. Acho que deve haver uma crítica à imprensa.

ISTOÉ – Não é surpreendente que os petistas, que antes levantavam tantas denúncias, agora reclamem delas?
Muniz Sodré

É natural, agora o PT é o poder. Há dez anos esteve aqui no Brasil o filósofo francês Alain Badiou. Participou de um debate no qual defendeu que, se algum dia o PT chegasse ao poder, não seria mais o PT. Queria dizer que um partido de esquerda que chega ao poder pelo voto vira centro. Na época, discordei. Dez anos depois, sou obrigado a bater na testa e reconhecer que Badiou tinha razão. Há uma antiga tese do alemão Carl Schmidt segundo a qual as democracias parlamentaristas do Ocidente e os parlamentos do Ocidente tendem à corrupção e ao centro. Ele não afirmou isso quanto a um país ou outro, e sim como lei geral da política. Eu acho que o PT não chegou ainda à corrupção, mas certamente chegou ao centro. O problema é saber se é centro-esquerda ou centro-direita.

ISTOÉ – E o argumento de que certas revelações quebram a privacidade do cidadão que ocupa o cargo público?
Muniz Sodré

Se um sigilo fiscal for violado e exposto de maneira que infrinja a Constituição, é só usar a lei. Com a legislação existente no Brasil isso se resolve. Mas se o jornalismo abrir mão de revelação dos segredos do mando, dos segredos do poder, estará fadado à morte. Sou contra a violação da Constituição, mas se há uma lei que impede os desvelamentos dos segredos do Estado, é um dispositivo antimoderno. O jornalismo tem autoridade para, pelo menos, bater de frente com certos dispositivos constitucionais? Essa autoridade advém de um nível de credibilidade e de consenso social. Se existir isso, aí sim, ele pode. É preciso haver um consenso ao mesmo tempo social e profissional quanto, digamos, à função elevada do jornalismo. Assim, pode-se avaliar se o sigilo está sendo quebrado em nome do bem público.

ISTOÉ – O que achou da reação de Ibsen Pinheiro, que mesmo sendo vítima da imprensa repudia a censura?
Muniz Sodré

Nunca tive maiores simpatias ou antipatias por esse senhor, sou meio neutro em relação a ele. Não gosto do seu partido, o PMDB. Mas esta reação de rejeitar a censura, mesmo tendo sofrido com um erro da imprensa, me leva a vê-lo como modelo de homem público, do ponto de vista ético. A moral é particular, algo de foro íntimo, e a ética tem a ver com a comunidade. O discurso de Ibsen se sobrepôs ao da moral e ele foi ético ao rechaçar qualquer possibilidade de censura. Ele foi homem, no sentido tradicional que a palavra tem na Bahia. Já o fato de o erro não ter sido reparado se deve à mesquinharia corporativista do jornalista, para quem é difícil consertar o erro. Ora, o erro é um momento necessário à verdade. A imprensa tem o direito de errar e o dever de se corrigir. Eu defendo a pressa da imprensa. Não se deve esperar, como quer o governo, que o jornalismo produza apenas notícias certinhas. A notícia não é o fato, mas apenas o indício do fato. Só a continuidade do noticiário vai mostrar o que é certo e o que é errado, e o que estiver errado tem que ser corrigido. Apenas a arrogância do jornalista impede que ele se desdiga. A consciência ética sugere que ele repare o erro.

ISTOÉ – Como avalia a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo?
Muniz Sodré

Mais perigosa que alguns artigos francamente autoritários é a intenção do projeto. Por que exatamente nesse momento criar um CFJ que é impeditivo, que é restritivo? O artigo que prevê a cassação do registro do jornalista é o pior de todos. No livro Democracia na América (Alexis de), Tocqueville diz que uma nova democracia pede uma forma nova de política. Eu me pergunto o seguinte: uma sociedade nova, com a mídia com a influência que tem, com o mercado, não pediria também um novo tipo de jornalismo? Esse jornalismo novo, para mim, pede mais liberdade. O prestígio do jornalismo no Ocidente foi conquistado graças à liberdade de expressão, liberdade de opinião. Certas questões poderiam ser resolvidas por uma espécie de British Council ou o Conselho alemão. Mas estes conselhos são dos jornalistas, não passam pelo Estado. Por que o projeto foi encaminhado ao governo? Acho que, em tempos de mais serenidade, um conselho no qual o jornalista pudesse discutir ética, relação com as empresas, relação da imprensa com o governo ou avaliar descaminhos éticos de cobertura é desejável. Mas uma proposta desse tipo não deveria nem de leve ser mostrada a ninguém de poder. Muito menos a Gabinete Civil.

ISTOÉ – Que tipo de conselho seria desejável?
Muniz Sodré

Acho que um conselho de jornalismo deveria nascer de um consenso não apenas entre profissionais e donos de imprensa, mas também de determinados grupos da sociedade civil, como OAB, ABI. Será que a ABI não poderia cumprir esse papel? É importante fortalecermos a sociedade civil. Houve um tempo em que a OAB e a ABI foram importantes para a sociedade brasileira. Se tiver a forma de um conselho, que conte com interlocutores de fora da classe jornalística, mas que não sejam do Estado. Esse é o defeito principal desse conselho: incluir o Estado nisso. Essa é uma questão de jornalistas e sociedade civil.

ISTOÉ – A reação dos jornalistas à criação do CFJ é motivada pelo corporativismo?
Muniz Sodré

A classe jornalística mostra forte corporativismo em determinados momentos. De maneira geral, o jornalista não aceita grandes análises nem grandes interferências no seu trabalho. No caso das objeções ao tal conselho de jornalismo, no entanto, avalio como uma defesa compreensível.

ISTOÉ – Não é curioso que uma reação desse tipo venha de um governo mais à esquerda que o governo Fernando Henrique, que nunca esboçou nenhum cerceamento às críticas da imprensa?
Muniz Sodré

Vem de muitos anos essa tradição da imprensa brasileira de derrubar autoridades. Um caso clássico é o editorial de inauguração do Correio da Manhã. Edmundo Bittencourt escreve: “Esse jornal nasceu não para fazer ministros, mas para derrubar ministros.” Essa é uma tarefa perfeita para o jornalismo. No governo Fernando Henrique, as denúncias pareciam repercutir mais. Talvez haja um problema de compreensão do governo Lula sobre qual é o significado da mídia. Coloco em dúvida a compreensão histórica do PT com relação à mídia. Eles compreendem que esse termo representa assessoria de imprensa ou assessoria de marketing. A modernidade do PT está no marketing do Duda Mendonça ou do Nizan Guanaes. Com exceção da Marilena Chauí, que eu já vi escrever artigos interessantes sobre tevê e mídia, o assunto é inexistente em suas discussões. Só se pensa em economia e política. Me pergunto se o governo avalia corretamente a inserção e o lugar da mídia na sociedade brasileira hoje. Estar contra ou fazer crítica desencadeia da parte do PT uma fúria punitiva muito grande. A mesma fúria punitiva que se estendeu a políticos como Babá, Heloísa Helena. Uma raiva, um ódio como se não pudesse haver discordância. Isso é emoção partidária antiga, algo incompatível com democracia social que se busca hoje.

ISTOÉ – O sr. acredita que essas denúncias podem estar atrapalhando o governo?
Muniz Sodré

Eu avalio que divergir do governo é ajudá-lo nesse momento. E divergir duramente. Porque divergência para terminar com cerveja e pizza não é uma coisa real. É preciso um contraditório social e popular para esse governo, que não está havendo. Do ponto de vista da argumentação e da discussão, há um ambiente de deserto, no sentido que (Friedrich) Nietzche dá. É a desolação, há um deserto de idéias, de argumentação, de criatividade. Então, hoje a indignação é pelo fato de ter havido a denúncia, e não pelo fato denunciado. O Henrique Meirelles (presidente do Banco Central) é denunciado, vem o governo e diz que ele está mais forte que antes das denúncias. É como em Alice no País das Maravilhas, em que o personagem diz: isso aqui é água. A rainha vem e diz que isso aqui é pedra. E, se você discordar, corto-lhe a cabeça. A rainha se vale da força para legitimar conceitos sem sentido. A decisão de dar a Meirelles o status de ministro, para ganhar foro privilegiado, é outra consequência desse pensamento.

ISTOÉ – Qual a origem dessa reação?
Muniz Sodré

Existe uma cultura política bolchevique, no pior sentido do termo. Acho que é anacrônica. Não há mais lugar para isso na contemporaneidade. A mídia pode ter todos os defeitos, mas ainda tem o benefício de oferecer o controle do poder pela exposição. Isso é irrefreável. A sociedade vive da transparência, mesmo sem ideal ético. Meus dados estão na internet, o Imposto de Renda sabe tudo sobre você, tem os recursos digitais que revelam o perfil de qualquer internauta. Isso é a sociedade de transparência. O governo não pode se ocultar. Já no século XVIII existia o imperativo de tornar público os atos de governo, (Immanuel) Kant já falava disso. É nadar contra a história querer botar biombos na frente disso. Acho que as entidades, os governos podem ter surtos autoritários. Há pessoas que não enlouquecem, mas têm surtos. Acredito que esse seja o caso.

ISTOÉ – O projeto de criação da Ancinav pode ser creditado a esse surto autoritário?
Muniz Sodré

O Estado não tem o direito nem o dever de meter a colher em nenhum roteiro de cinema, em nenhum programa de tevê. A menos que ele queira fazer danos definitivos à cultura. A cultura só tem sentido no espaço de liberdade. O governo não pode legislar sobre conteúdo, isso é stalinismo, dirigismo insuportável e intolerável. Mesmo com as boas intenções de “defender a cultura brasileira”. Sou radicalmente contra. Acho que é nadar contra maré da história se o governo quiser intervir. Não que às vezes não dê vontade. Eu ligo a tevê e algumas vezes vejo a Luciana Gimenez, um programa que assisto com o mesmo fascínio com que vejo um acidente de trânsito. A diferença é que eu fixo o olhar. Outro dia vi ali uma moça vendendo a virgindade por R$ 100 mil. Ela fingia escândalo. Na semana passada vi uma professora de posições sexuais de São Paulo que demonstrava o Kama Sutra. Isso parece liberdade, mas é o lixo televisivo. Em outros canais a mesma coisa. Ainda assim, sou contra qualquer intervenção do governo. Em matéria de cultura e de informação, o governo tem que ser afirmativo. Deveria afirmar uma rede pública de televisão com programação séria, confrontar com qualidade. O Ministério da Cultura não é lugar para regulamentação do entretenimento.