25/08/2004 - 10:00
A sequência de denúncias publicadas pela imprensa tendo como alvo altos figurões da República causou revolta no presidente Lula e em vários ministros. No lugar dos personagens envolvidos nas irregularidades, a ira das autoridades federais se voltou contra os jornalistas que revelam essas histórias. Reportagens desse tipo ganharam dos integrantes do Executivo um apelido pejorativo: denuncismo. Doutor em comunicação social e professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o baiano Muniz Sodré, 62 anos, autor de 26 livros e conhecido como crítico rigoroso da mídia brasileira, discorda completamente. A começar pela denominação escolhida pelos governistas. “Se o regime de quem ocupa a Presidência é o presidencialismo, o conjunto de denúncias deveria ser chamado de denuncialismo, e não denuncismo”, corrige. O professor acredita que uma das mais importantes funções da imprensa é justamente denunciar e revelar os bastidores do poder. Se as acusações estão surgindo com maior frequência, Muniz Sodré tem para o fato uma razão quase aritmética. “Efetivamente, tem havido muitas denúncias. Mas isso acontece porque a corrupção se alastrou no espaço público, no serviço público”, avalia.
A opinião de Muniz Sodré tem importância reconhecida pelo governo. Ele integra o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – um grupo de 80 notáveis de várias áreas de atuação que discute os assuntos mais importantes do País e assessora o presidente da República. Na condição insuspeita de quem votou em Lula na última eleição, o mestre identifica na posição das autoridades federais um sinal de que o PT, ao chegar ao poder, tornou-se um partido de centro. “Falta saber se de centro-esquerda ou centro-direita”, ironiza. Nesta entrevista, o professor elogia ainda a reação do ex-deputado Ibsen Pinheiro, que, mesmo tendo sofrido bastante com um erro de imprensa, discorda de qualquer iniciativa de censura. “Eu o vejo como modelo de homem público, do ponto de vista ético.”
Uma das funções da imprensa é denunciar, mesmo que a palavra pareça feia ou pesada. A imprensa surge expandindo o artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que trata da valorização dos direitos civis. Principalmente, direito de desocultação. Ou seja: direito de tornar visível aquilo que o poder, o império, pretendia manter invisível. A grande expansão do prestígio do jornalismo se deve a essa desocultação. Assim, é possível conhecer os mecanismos de decisão e não mais haverá o segredo da antecâmara do palácio do rei. É um direito público reivindicar que nada fique oculto, que tudo se torne transparente. Há uma acusação de certo conluio do jornalismo com o Ministério Público. Se existe esse conluio, é uma coisa espúria. Mas, a rigor, a imprensa tem funções que cabem ao MP. E a principal delas é a de denunciar.
Efetivamente, tem havido muitas denúncias. Mas isso acontece porque a corrupção se alastrou no espaço público, no serviço público. Não é uma falha da imprensa. Cabe ao denunciado dizer se aquilo é ou não verdade. Por outro lado, não creio que seja função da imprensa, nem no passado nem hoje, dar sabedoria ao governo, como quer o presidente. Ao contrário. A imprensa está aí para avaliar a sabedoria do governo. Cabe ao governo agir sabiamente e cabe ao jornalismo e ao povo avaliar. Se a imprensa está fazendo isso bem ou mal, é um outro problema. Acho que deve haver uma crítica à imprensa.
É natural, agora o PT é o poder. Há dez anos esteve aqui no Brasil o filósofo francês Alain Badiou. Participou de um debate no qual defendeu que, se algum dia o PT chegasse ao poder, não seria mais o PT. Queria dizer que um partido de esquerda que chega ao poder pelo voto vira centro. Na época, discordei. Dez anos depois, sou obrigado a bater na testa e reconhecer que Badiou tinha razão. Há uma antiga tese do alemão Carl Schmidt segundo a qual as democracias parlamentaristas do Ocidente e os parlamentos do Ocidente tendem à corrupção e ao centro. Ele não afirmou isso quanto a um país ou outro, e sim como lei geral da política. Eu acho que o PT não chegou ainda à corrupção, mas certamente chegou ao centro. O problema é saber se é centro-esquerda ou centro-direita.
Se um sigilo fiscal for violado e exposto de maneira que infrinja a Constituição, é só usar a lei. Com a legislação existente no Brasil isso se resolve. Mas se o jornalismo abrir mão de revelação dos segredos do mando, dos segredos do poder, estará fadado à morte. Sou contra a violação da Constituição, mas se há uma lei que impede os desvelamentos dos segredos do Estado, é um dispositivo antimoderno. O jornalismo tem autoridade para, pelo menos, bater de frente com certos dispositivos constitucionais? Essa autoridade advém de um nível de credibilidade e de consenso social. Se existir isso, aí sim, ele pode. É preciso haver um consenso ao mesmo tempo social e profissional quanto, digamos, à função elevada do jornalismo. Assim, pode-se avaliar se o sigilo está sendo quebrado em nome do bem público.
Nunca tive maiores simpatias ou antipatias por esse senhor, sou meio neutro em relação a ele. Não gosto do seu partido, o PMDB. Mas esta reação de rejeitar a censura, mesmo tendo sofrido com um erro da imprensa, me leva a vê-lo como modelo de homem público, do ponto de vista ético. A moral é particular, algo de foro íntimo, e a ética tem a ver com a comunidade. O discurso de Ibsen se sobrepôs ao da moral e ele foi ético ao rechaçar qualquer possibilidade de censura. Ele foi homem, no sentido tradicional que a palavra tem na Bahia. Já o fato de o erro não ter sido reparado se deve à mesquinharia corporativista do jornalista, para quem é difícil consertar o erro. Ora, o erro é um momento necessário à verdade. A imprensa tem o direito de errar e o dever de se corrigir. Eu defendo a pressa da imprensa. Não se deve esperar, como quer o governo, que o jornalismo produza apenas notícias certinhas. A notícia não é o fato, mas apenas o indício do fato. Só a continuidade do noticiário vai mostrar o que é certo e o que é errado, e o que estiver errado tem que ser corrigido. Apenas a arrogância do jornalista impede que ele se desdiga. A consciência ética sugere que ele repare o erro.
Mais perigosa que alguns artigos francamente autoritários é a intenção do projeto. Por que exatamente nesse momento criar um CFJ que é impeditivo, que é restritivo? O artigo que prevê a cassação do registro do jornalista é o pior de todos. No livro Democracia na América (Alexis de), Tocqueville diz que uma nova democracia pede uma forma nova de política. Eu me pergunto o seguinte: uma sociedade nova, com a mídia com a influência que tem, com o mercado, não pediria também um novo tipo de jornalismo? Esse jornalismo novo, para mim, pede mais liberdade. O prestígio do jornalismo no Ocidente foi conquistado graças à liberdade de expressão, liberdade de opinião. Certas questões poderiam ser resolvidas por uma espécie de British Council ou o Conselho alemão. Mas estes conselhos são dos jornalistas, não passam pelo Estado. Por que o projeto foi encaminhado ao governo? Acho que, em tempos de mais serenidade, um conselho no qual o jornalista pudesse discutir ética, relação com as empresas, relação da imprensa com o governo ou avaliar descaminhos éticos de cobertura é desejável. Mas uma proposta desse tipo não deveria nem de leve ser mostrada a ninguém de poder. Muito menos a Gabinete Civil.
Acho que um conselho de jornalismo deveria nascer de um consenso não apenas entre profissionais e donos de imprensa, mas também de determinados grupos da sociedade civil, como OAB, ABI. Será que a ABI não poderia cumprir esse papel? É importante fortalecermos a sociedade civil. Houve um tempo em que a OAB e a ABI foram importantes para a sociedade brasileira. Se tiver a forma de um conselho, que conte com interlocutores de fora da classe jornalística, mas que não sejam do Estado. Esse é o defeito principal desse conselho: incluir o Estado nisso. Essa é uma questão de jornalistas e sociedade civil.
A classe jornalística mostra forte corporativismo em determinados momentos. De maneira geral, o jornalista não aceita grandes análises nem grandes interferências no seu trabalho. No caso das objeções ao tal conselho de jornalismo, no entanto, avalio como uma defesa compreensível.
Vem de muitos anos essa tradição da imprensa brasileira de derrubar autoridades. Um caso clássico é o editorial de inauguração do Correio da Manhã. Edmundo Bittencourt escreve: “Esse jornal nasceu não para fazer ministros, mas para derrubar ministros.” Essa é uma tarefa perfeita para o jornalismo. No governo Fernando Henrique, as denúncias pareciam repercutir mais. Talvez haja um problema de compreensão do governo Lula sobre qual é o significado da mídia. Coloco em dúvida a compreensão histórica do PT com relação à mídia. Eles compreendem que esse termo representa assessoria de imprensa ou assessoria de marketing. A modernidade do PT está no marketing do Duda Mendonça ou do Nizan Guanaes. Com exceção da Marilena Chauí, que eu já vi escrever artigos interessantes sobre tevê e mídia, o assunto é inexistente em suas discussões. Só se pensa em economia e política. Me pergunto se o governo avalia corretamente a inserção e o lugar da mídia na sociedade brasileira hoje. Estar contra ou fazer crítica desencadeia da parte do PT uma fúria punitiva muito grande. A mesma fúria punitiva que se estendeu a políticos como Babá, Heloísa Helena. Uma raiva, um ódio como se não pudesse haver discordância. Isso é emoção partidária antiga, algo incompatível com democracia social que se busca hoje.
Eu avalio que divergir do governo é ajudá-lo nesse momento. E divergir duramente. Porque divergência para terminar com cerveja e pizza não é uma coisa real. É preciso um contraditório social e popular para esse governo, que não está havendo. Do ponto de vista da argumentação e da discussão, há um ambiente de deserto, no sentido que (Friedrich) Nietzche dá. É a desolação, há um deserto de idéias, de argumentação, de criatividade. Então, hoje a indignação é pelo fato de ter havido a denúncia, e não pelo fato denunciado. O Henrique Meirelles (presidente do Banco Central) é denunciado, vem o governo e diz que ele está mais forte que antes das denúncias. É como em Alice no País das Maravilhas, em que o personagem diz: isso aqui é água. A rainha vem e diz que isso aqui é pedra. E, se você discordar, corto-lhe a cabeça. A rainha se vale da força para legitimar conceitos sem sentido. A decisão de dar a Meirelles o status de ministro, para ganhar foro privilegiado, é outra consequência desse pensamento.
Existe uma cultura política bolchevique, no pior sentido do termo. Acho que é anacrônica. Não há mais lugar para isso na contemporaneidade. A mídia pode ter todos os defeitos, mas ainda tem o benefício de oferecer o controle do poder pela exposição. Isso é irrefreável. A sociedade vive da transparência, mesmo sem ideal ético. Meus dados estão na internet, o Imposto de Renda sabe tudo sobre você, tem os recursos digitais que revelam o perfil de qualquer internauta. Isso é a sociedade de transparência. O governo não pode se ocultar. Já no século XVIII existia o imperativo de tornar público os atos de governo, (Immanuel) Kant já falava disso. É nadar contra a história querer botar biombos na frente disso. Acho que as entidades, os governos podem ter surtos autoritários. Há pessoas que não enlouquecem, mas têm surtos. Acredito que esse seja o caso.
O Estado não tem o direito nem o dever de meter a colher em nenhum roteiro de cinema, em nenhum programa de tevê. A menos que ele queira fazer danos definitivos à cultura. A cultura só tem sentido no espaço de liberdade. O governo não pode legislar sobre conteúdo, isso é stalinismo, dirigismo insuportável e intolerável. Mesmo com as boas intenções de “defender a cultura brasileira”. Sou radicalmente contra. Acho que é nadar contra maré da história se o governo quiser intervir. Não que às vezes não dê vontade. Eu ligo a tevê e algumas vezes vejo a Luciana Gimenez, um programa que assisto com o mesmo fascínio com que vejo um acidente de trânsito. A diferença é que eu fixo o olhar. Outro dia vi ali uma moça vendendo a virgindade por R$ 100 mil. Ela fingia escândalo. Na semana passada vi uma professora de posições sexuais de São Paulo que demonstrava o Kama Sutra. Isso parece liberdade, mas é o lixo televisivo. Em outros canais a mesma coisa. Ainda assim, sou contra qualquer intervenção do governo. Em matéria de cultura e de informação, o governo tem que ser afirmativo. Deveria afirmar uma rede pública de televisão com programação séria, confrontar com qualidade. O Ministério da Cultura não é lugar para regulamentação do entretenimento.