No leito de hospital, uma simpática senhora solta um comentário anedótico sobre o filho taxista ao seu lado, que ela pensa conhecer como a palma da mão. “Tudo o que ele faz é conversar com o espelho.” A frase citando o personagem Travis Bickle, vivido por Robert de Niro em Taxi driver – motorista de táxi, faz todo o sentido quando surge em meio a uma cena supertensa de Colateral (Collateral, Estados Unidos, 2004), que estréia no País na sexta-feira 27. Desde o clássico de Martin Scorsese, feito há 28 anos, um filme sobre motoristas de táxi não se revelava tão elétrico quanto este policial noir passado no período de uma noite na frenética Los Angeles. Não exatamente pelo que atormenta o sujeito no volante, mas pelas intenções do passageiro do banco de trás. Em seu primeiro papel de verdadeiro vilão, Tom Cruise é um matador de aluguel que obriga o motorista a ser seu cúmplice do banho de sangue para o qual foi contratado.

Claro que o taxista Max (Jamie Foxx), um exemplo de dedicação, não fazia a mínima idéia dos planos de Vincent – o passageiro-galã, de cabelos grisalhos e terno bem-talhado – quando este lhe ofereceu US$ 600 dólares para ficar à sua inteira disposição. Tanto que Max quase se engasga com um cachorro-quente ao sentir um cadáver fresquinho, jogado do quarto andar de um prédio, cair sobre a capota de seu carro. É a primeira das cinco vítimas que Vincent tem que matar até o final da noite. Contratado por um chefão do narcotráfico, o assassino corre contra o tempo para eliminar uma a uma as testemunhas convocadas pelo tribunal para desbaratar a gangue. “Você matou esse cara?”, pergunta o motorista. “Não, apenas atirei. Quem o matou foi a bala e a queda que sofreu”, responde Vincent, friamente.

Minutos depois, num clube de jazz, o taxista – sempre na mira do revólver do inimigo – assiste boquiaberto ao desfecho da próxima execução. Vincent convida sua vítima, o trompetista dono do clube, para um drinque. Em meio a uma conversa atravessada sobre a visita de Miles Davis ao local, ele pronuncia a sentença de morte. Se souber como Davis aprendeu música, o músico estará livre para desaparecer da cidade. Ele se esforça, e, molhado de suor, responde: “Na Julliard School, 1945.” O tiro na testa vem com um adendo. “E mais dois anos, com Charlie Parker.” Diálogos do tipo pululam o tempo todo, apesar de muitas vezes soarem artificiais, prejudicando a relação senhor–escravo colocada em cena pelo roteiro bem arquitetado.

Filmado quase inteiramente em vídeo digital de alta definição, o filme foi ambientado em Los Angeles por uma imposição do diretor Michael Mann, que desejava mergulhar na noite brilhante da cidade, que se estende como um tapete luminoso no horizonte. Mann queria captar o que as películas cinematográficas não conseguem. O resultado impressiona. Quando Vincent se dirige a uma boate de coreanos para cumprir mais uma etapa de sua missão, por exemplo, cruza com três coiotes atravessando a rua. Na cena noturna, até os olhos dos animais podem ser vistos. Numa outra sequência, o tiroteio travado no escuro de um edifício transparente, com vista para um entroncamento de vias expressas, o espectador assiste em detalhes ao sucessivo esfacelamento de placas de vidro. Nem é preciso dizer que Tom Cruise, que dispensa dublês, sai quase ileso.

Mas não é pela forma física que o ex de Nicole Kidman marca tento. Embora ainda traga resquícios do bom moço de sempre, o ator de 42 anos se mostra muito convincente na sua ironia. Logo no início, ao comentar com o taxista porque detesta Los Angeles, Vincent conta a história de um homem que morreu no metrô da cidade e passou quase um dia inteiro circulando sem que ninguém notasse. É bom ter em mente essa frase para gostar de Colateral. Com o formato de policial, o filme fala dos encontros improváveis e das histórias fugidias que podem nascer do acaso nas grandes metrópoles.