O olhar do pesquisador Sérgio Stella, 33 anos, está perdido no vazio. A fadiga aflora a sensibilidade à cacofonia a sua volta – vozes, aparelhos de ginástica em movimento, a televisão ligada. “Só estou pensando em deitar e dormir. Às vezes estou andando e parece que vou desligar, dou uma bambeada,
como se fosse o começo de um desmaio.” Ele olha a televisão. O Brasil disputa um jogo de vôlei na Olimpíada. “Adoro vôlei, mas este jogo não faz sentido para mim. Somos um bando de ratos numa caixinha de experimentos.” Stella está confinado no nono andar do prédio do Instituto do Sono, na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Não está sozinho. São mais 15 voluntários, integrantes de uma pesquisa inédita no País, coordenada pela pesquisadora do Centro de Estudos em Psicobiologia e Exercício da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Hanna Karen Antunes, que estuda os efeitos da privação do sono nos seres humanos. Submeteu o grupo a uma média de 80 horas seguidas sem dormir, ao custo de uma vigilância permanente para que nem sequer cochilassem. Na primeira ameaça de fraquejar, eram aconselhados a lavar o rosto. Nesta insônia induzida, Stella se manteve aceso graças a café, vários banhos diários, e um providencial videogame Playstation. “Estou aqui pela amizade com a Hanna”, confessa.

Entre os voluntários havia sedentários como Stella e sete atletas de um tipo
de prova muito peculiar, que começa a emergir no País: a corrida de aventura, espécie de enduro humano, que congrega modalidades como trekking,
mountain bike, canoagem, em botes infláveis, técnicas verticais e até cavalgadas. Eles não foram escolhidos à toa. A corrida de aventura costuma se prolongar
por vários dias de muito esforço, através de cerca de 500 quilômetros percorridos entre lugares exóticos, belos e inóspitos. Durante a prova, dorme-se pouco ou
quase nada e se conhece o desconforto físico e a dor. Poucos esportes levam
a idéia de superação física e psicológica. Numa competição, eles queimam por dia cerca de dez mil calorias.

No laboratório do Instituto do Sono os sete atletas foram convidados a recriar
in door o ambiente da corrida de aventura utilizando uma esteira com uma
inclinação de 20% – para simular o trekking – um ciclosimulador, para a
mountain bike e um cicloergomêtro de braço, que reproduz a sensação do
remo na canoagem. “Só não simulamos o rapel porque alguém poderia despencar de sono”, diz Hanna. A pesquisa foi feita para prepará-los para uma futura prova do gênero, em outubro, na Costa do Dendê, litoral sul da Bahia e, ao mesmo tempo, tirar conclusões que ajudassem na rotina de profissionais como médicos, motoristas, bombeiros e policiais, que muitas vezes não conseguem dormir como deveriam. A constatação inicial é de que quem faz esporte tem o organismo muito mais protegido dos efeitos da ausência de sono. Após as 80 horas, os voluntários dormiram em média 16 horas ininterruptas, sem acordar para nada e a recuperação, tanto física como psicológica foi total. Enquanto dormiram, foram monitorados por eletrodos, espalhados pelo corpo.

O sono profundo a que tiveram direito foi o desfecho de uma maratona iniciada às 7h da manhã de quinta-feira 12 e só encerrada na tarde de domingo 15, à tarde. Na quinta-feira pela manhã, os atletas fizeram coleta de sangue e urina, seguiram para trabalhar e começaram os exercícios na noite do mesmo dia. Na esteira e nos outros simuladores, percorreram 477 quilômetros. A partir das 19 horas as luzes do laboratório foram apagadas e eles continuavam em movimento com luzes nos capacetes. Um dos atletas, o arquiteto Amaury de Souza Jr., 43 anos, estava preocupado com a monotonia do confinamento e com as consequências do esforço repetitivo da esteira, onde ficaram por 30 horas ao todo. “Fiquei muito feliz em terminar, mas achei que podia não conseguir. Faltava um imprevisto, como entrar num rio, se agarrar numa pedra, situações comuns na corrida de aventura.” Rosângela Hoeppner, 43 anos, que já participou de oito Iroman – prova dividida em natação corrida e ciclismo – embora garanta que só aprendeu a nadar aos 35 anos, era uma das mais animadas com a experiência. “Não parei de falar besteira e de cantar, vou saber até onde meu corpo vai, meu objetivo é chegar à exaustão mesmo”, comemorava ela, depois de deixar o marido “sedentário” em casa e mais três filhos. Em tempos de Olímpiada, nenhuma maratona foi tão radical.