O cargo de ministro da Saúde é estratégico. Se o seu titular mostrar bom desempenho, melhora a imagem de todo o governo e ganha impulso para dar passos maiores na carreira política. Se tiver maus resultados, é um telhado de vidro perfeito. Um ano e oito meses depois de assumir a posição, o paulista Humberto Costa (ele nasceu em Campinas, no interior de São Paulo, e cresceu no Recife), 47 anos, continua com a tarefa de arrumar a casa. Para isso, o ministro, formado em medicina, jornalismo e com especialização em ciência política, tem muitos planos no papel.

Sob seu comando, o Ministério já iniciou alguns programas para interferir no complicado cenário da saúde nacional, onde a espera por uma consulta no Sistema Único de Saúde (SUS) pode demorar meses e não há garantia da eficácia na assistência prestada. Entre as iniciativas para diminuir as críticas ao SUS há um programa, o QualiSus, que tem como objetivo promover a tão sonhada qualidade ao serviço prestado pelo sistema. Isso significa a promessa de atendimento que responda às necessidades da população. Outra preocupação do ministro é deixar claras as atribuições e responsabilidades de cada uma das três instâncias da saúde pública (municipal, estadual e federal). “Precisamos eliminar as bolas divididas. Hoje o cidadão não sabe se reclama ao Estado, ao município ou ao governo federal”, diz.

Nesta semana, na quinta-feira 26, Costa participa do fórum Saúde, Equidade e Inclusão Social, organizado pelo Departamento de Seminários e Palestras da Três Editorial. No encontro, serão debatidos alguns dos principais temas da saúde nacional. Nesta entrevista concedida em São Paulo, o ministro explicou o que pretende fazer contra problemas como a epidemia de hepatite C.

ISTOÉ – Quais os destaques da sua administração até agora?
Humberto Costa
– Um dos nossos objetivos é ampliar o acesso da população aos serviços de saúde e estamos fazendo isso. Criamos o programa de saúde da família, temos procurado credenciar mais serviços para prestar atendimento. Temos também o programa de saúde bucal – queremos implantar 400 centros de atendimento especializado até 2006. Em segundo lugar, há o acesso aos remédios. Crescemos em 44% os gastos com medicamentos no SUS. Isso significa a ampliação da distribuição gratuita de remédios e estamos implantando a farmácia popular (o programa prevê a venda de remédios essenciais a baixo custo). O barateamento dos medicamentos ampliará o acesso. Outro ponto em que estamos acertando é o controle das doenças endêmicas. Aprimoramos o programa de Aids, reestruturamos a área de hanseníase, tuberculose e malária. Também trabalhamos para melhorar a qualidade do atendimento, a partir do QualiSus. Vamos enfrentar o problema das filas, das emergências superlotadas, da demora para fazer uma consulta especializada ou uma cirurgia simples.

ISTOÉ – De que maneira?
Costa
– Reduzimos o déficit de leitos de UTI e estamos implantando o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), que organiza esse atendimento, e faz a assistência de emergência pré-hospitalar em via pública e em domicílio. E queremos trabalhar nos hospitais de urgência com a idéia de valorização do risco, e não da ordem de chegada no atendimento. No ano que vem ampliaremos o programa na direção do atendimento por especialistas. Pretendemos destinar recursos, credenciar mais serviços. Já aprovamos um projeto de mutirões para procedimentos que têm fila de espera grande. Queremos reduzir a fila para cirurgias eletivas, que são simples, como de vesícula e de hérnia.

ISTOÉ – O programa prevê aumento salarial para o médico, insatisfeito com os recursos de que dispõe para trabalhar e com o pagamento que recebe?
Costa
– De fato, a remuneração é um problema. No entanto, ela não é a única coisa. No Samu, por exemplo, o nível de satisfação do profissional no que faz é grande. Teremos de pensar em remuneração diferenciada que possa redundar em benefício para o profissional. Mas a valorização do que está sendo feito por eles gera um grau de satisfação razoável.

ISTOÉ – Há anos o cidadão ouve promessas de que haverá melhora na prestação do serviço. Mas quando afinal será possível marcar consulta para depois de dois, três dias, ter atendimento eficiente e encontrar o medicamento disponível na farmácia pública?
Costa
– É difícil dar essa resposta. Não tenho como dizer que daqui a quatro anos a pessoa irá a uma unidade de saúde, será atendida rapidamente, fará os exames e sairá com o remédio. Esse é o grande gargalo. Mas isso é uma construção e estamos tomando medidas que se refletirão mais à frente. Concretamente, o que posso dizer é que no final deste governo o atendimento de urgência deverá ter melhorado bastante.

ISTOÉ – De onde virá o dinheiro para todas as ações?
Costa –
Estamos com recursos de R$ 500 milhões previstos para o QualiSus
no ano que vem.

ISTOÉ Como garantir que o dinheiro seja de fato aplicado na saúde?
Costa – Temos de criar uma lei de responsabilidade sanitária. Se o administrador não cumprir as metas previstas, por exemplo, ele deveria ser responsabilizado. Estamos trabalhando nesse modelo junto com a Controladoria Geral da
União, Tribunal de Contas e Ministério Público. Embora os recursos para
saúde sejam limitados, se conseguirmos que sejam aplicados de forma
adequada, podem render bastante.

ISTOÉ – Mas ainda hoje quem procura a rede pública depara com falta de remédio, de materiais básicos como esparadrapo, etc. Então o problema não é falta de dinheiro? É má administração?
Costa
– Não estou dizendo que está sobrando dinheiro. Mas muita coisa depende
de quem é o gestor. Há cidades com sistema precário e outras com sistema muito bom. Isso depende em boa parte do gestor. E tem muito município que não gasta adequadamente o que recebe nem gasta o que deveria. A maioria dos Estados não cumpre a emenda constitucional 29, que define os gastos mínimos com a saúde. Vários colocam como custo de saúde, por exemplo, gasto com plano de saúde de funcionários públicos. E há o problema de desvio, que pode acontecer também

ISTOÉ – Afinal, qual é a maior dificuldade para melhorar o SUS?
Costa
– As dificuldades maiores são ao mesmo tempo as maiores virtudes que o sistema tem. O fato de termos três instâncias na federação que executam funções diferenciadas é um avanço, mas também é um problema. Porque depende muito de quem está lá na ponta. E a responsabilidade sempre chega ao governo federal. A população não tem muito claro o que é atribuição de cada instância. Essa é uma idéia que precisamos trabalhar também. Eliminar as bolas divididas é fundamental. Quero que as pessoas saibam de quem cobrar.

ISTOÉ – O sr. tem plano de saúde?
Costa
– Sim, desde 1992.

ISTOÉ – Sente-se bem atendido?
Costa
– Das vezes em que utilizei, não tenho reclamação. Tive problemas decorrentes do fato de ter um plano antigo e não contar com algumas coberturas.

ISTOÉ – Então o sr. não migrou nem adaptou?
Costa
– Não recebi proposta. Mas quando receber, vou fazer a mudança. Quero
estar coberto pela legislação de 1998.

ISTOÉ – O sr. tem plano de saúde porque não confia no atendimento público?
Costa
– Não é não confiar. Determinado tipo de atendimento no serviço público é melhor do que no privado. Se eu sofrer um acidente no Recife, digo para me levarem para a Restauração, que é um hospital público. Se eu sofrer um aqui em São Paulo, quero ir para o Hospital das Clínicas. Nesses locais estão os melhores médicos. Hoje, a decisão de ter ou não plano de saúde é muito por conta dos gargalos no atendimento público. No dia em que resolvermos os problemas, muita gente deixará de ter plano e irá para o SUS.

ISTOÉ – O sr. não se sente desconfortável de pagar impostos e ter de pagar também plano de saúde?
Costa
– Nosso objetivo é construir um sistema público universal, que garanta equidade e integralidade. Estamos lutando para construir isso de modo que possamos chegar a uma situação na qual as pessoas procurem atendimento privado apenas por uma razão de comodidade, e não por necessidade. Nesse sentido me sinto duplamente desconfortável. De um lado porque eu preferiria, na condição de quem paga imposto, receber um bom atendimento público. E na condição de gestor, vejo que esse é um caminho que temos de perseguir.

ISTOÉ – Nos próximos anos, a população de idosos no Brasil aumentará. O sistema de saúde não está preparado para isso e tampouco os planos, que
hoje cobram mensalidades altas dessa população. Isso vai mudar ou os nossos filhos terão de trabalhar um turno a mais para pagar nossos planos quando envelhecermos?
Costa
– No caso do sistema público, temos boas ações na área de
prevenção. Estamos trabalhando muito com diabete, obesidade, hipertensão.
Há, por exemplo, a garantia do Ministério de viabilizar medicamentos para
todos os diabéticos e hipertensos, do mesmo jeito que fazemos com a Aids. Queremos começar no ano que vem. O objetivo é de que a população idosa demande menos os serviços de saúde.

ISTOÉ – E isso dependeria também de os planos investirem em prevenção e dignamente cobrarem menos dessa população?
Costa
– Sim. A lógica seria essa.

ISTOÉ – Que ações estão sendo feitas para conter a epidemia de hepatite C, um dos mais graves problemas de saúde pública do País?
Costa
– Primeiro um inquérito epidemiológico para sabermos realmente quantos brasileiros têm a doença. No ano que vem deve estar pronto. Além disso, trabalhamos na ampliação do diagnóstico e na reestruturação dos centros de testagem anônima para Aids para que façam testes de hepatite C. O acesso aos medicamentos também é um ponto fundamental. Trata-se de uma área controversa que envolve interesses econômicos gigantescos e uma discussão sobre prescrição do interferon atualmente mais usado e de um interferon peguilado (outra forma do produto). O peguilado é mais caro e tem peso grande nos gastos públicos com a doença. Cientificamente, o que se tem de benefício no uso do interferon mais usado em relação ao produto peguilado não é tão distante. Mas queremos sair desse dilema. Estamos em negociação com o governo cubano para transferência de tecnologia do interferon e da ribavirina (mais um medicamento usado no tratamento da hepatite C e outras doenças). Também vamos desenvolver o processo de peguilação com os cubanos e produzir o interferon peguilado em laboratórios públicos. Isso vai baratear o processo.

ISTOÉ – O interferon está entre os remédios que faltam muito na rede pública.
Por quê?
Costa
– Medicamentos excepcionais são oferecidos à população em
co-financiamento entre o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais.
Nós transferimos religiosamente esses recursos, que aumentaram. Este ano,
foram R$ 770 milhões e a previsão para o ano que vem é gastar R$ 980 milhões com esses remédios. Mas às vezes os Estados entram com a parte deles, às
vezes se desorganizam.

ISTOÉ – Por que os pacientes que não controlaram a doença no primeiro tratamento com interferon precisam de uma liminar da Justiça quando é necessário repetir a terapia?
Costa
– Pelo entendimento dos protocolos clínicos construídos pelos maiores hepatologistas do Brasil e do mundo, um novo tratamento com interferon não teria resultado nesses casos.