Muitos planejaram, nas últimas décadas, a segunda morte de Getúlio Vargas. Desde que o presidente saiu da vida, ao disparar contra o próprio peito na madrugada de 24 de agosto de 1954, não faltaram tentativas de minimizar sua entrada na história. Em 1994, Fernando Henrique Cardoso chegou à Presidência e prometeu no Senado o “fim da Era Vargas”. Agora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva planeja a modificação de um dos emblemas varguistas, a Consolidação das Leis do Trabalho. Antes, personagens como Carlos Lacerda, Eduardo Gomes e Roberto Campos também tentaram fossilizá-lo. Não conseguiram. Cinquenta anos após o seu suicídio, o legado de Getúlio Vargas pode ser detectado em quase todas as áreas da vida brasileira. A CLT ainda é o principal marco das garantias trabalhistas, a Petrobras é uma das maiores empresas do mundo – com lucro de R$ 7,8 bilhões no primeiro semestre –, o BNDES continua sendo o principal financiador do desenvolvimento no País e gestos como a colonização da Amazônia e a reforma universitária não foram superados. As manifestações populares no enterro de Leonel Brizola, seu principal herdeiro ideológico, e a disputa de políticos por seu espólio mostram que o sepultamento do trabalhismo ainda está por ser feito – há no Congresso Nacional 26 parlamentares sob essa bandeira. Do Getúlio ditador, que aniquilou opositores e censurou a imprensa, pouco se fala. Paradoxalmente, o professor titular de história contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira da Silva credita aos neoliberais essa omissão. “Atacam Getúlio pelo que fez de bom, como a criação de garantias trabalhistas. Levam o povo a defender o personagem provedor e ignorar o tirano.”

A onipresença de Getúlio difere muito do caráter pop do culto à Che Guevara, cuja fronte frequenta com assiduidade as camisetas e pôsteres de adolescentes. Acomete os mais velhos e está mais no terreno da hagiografia, o estudo das vidas santificadas. “É como se ele fosse uma espécie de santo a quem os trabalhadores brasileiros recorrem em momentos de dificuldade”, compara Teixeira da Silva. Há lembranças dele por toda a parte e basta circular por qualquer capital brasileira para confirmar isso. No Rio de Janeiro existem 74 ruas ou avenidas batizadas com o nome de Getúlio, em Belo Horizonte são 34 e mesmo em São Paulo, onde muitos o vêem como inimigo – resquício do movimento constitucionalista de 32 –, há nada menos que 102 delas. As livrarias também não deixam esquecê-lo. Há nas estantes pelo menos 30 títulos que tratam dos dois períodos em que governou o País. “Eu era um jovem antigetulista de 20 anos quando encontrei com ele há 50 anos, dois meses antes do suicídio”, conta Flavio Tavares, autor do livro O dia em que Getúlio matou Allende (editora Record). “Fiquei impressionado com sua figura, mas me mantive como opositor. Só consegui compreendê-lo completamente depois de sua morte.” Tavares acredita que as análises do personagem histórico são embaçadas até hoje pelas fortes emoções que ele mesmo provocou. O episódio da extradição de Olga Benário Prestes, retratado no filme Olga, que entrou em cartaz nos cinemas de todo o Brasil na sexta-feira 20, é, para o autor, um desses momentos envolto em dúvidas. “A extradição de Olga foi uma decisão terrível e Getúlio é responsável por ela, mas é preciso indagar se naquele momento (1936) o presidente sabia da existência dos campos de concentração nazistas”, questiona.

Não há dúvidas, no entanto, quanto à truculência do ditador que criou a Polícia Especial, o Departamento de Imprensa e Propaganda e o Tribunal de Segurança Nacional. O cientista político Fernando Abrucio, professor da PUC de São Paulo e da FGV-SP, avalia que o varguismo tinha a marca autoritária. “Aquele período foi importante para mostrar que a sociedade não pode dispensar o Estado, mas errou-se ao apostar num Estado que tudo podia e que deveria estar em todos os setores”, diz. O professor destaca que, para o bem e para o mal, os governos de Getúlio têm grande peso sobre o que somos hoje. “Ali se criou o Brasil industrial, a classe média moderna, falou-se pela primeira vez na importância da miscigenação das raças. Mas por outro lado, nasceu a crença demiurga em um poder central que toma conta da sociedade e criou-se o corporativismo que causa prejuízos até hoje.” Por esse motivo, Abrucio acredita que alguma fumaça de varguismo persiste, mas que o trabalhismo como corrente política não tem mais vez. Apesar disso, no Rio de Janeiro, o ideário trabalhista ainda influencia três importantes grupos políticos. O prefeito César Maia, do PFL, candidato à reeleição, vai marcar o dia do cinquentenário da morte de Getúlio com a inauguração de um memorial em sua homenagem, cuja principal atração é um busto de bronze de quatro metros de altura. A governadora Rosinha Matheus e seu marido, o ex-governador e secretário de Segurança Pública Anthony Garotinho, filiados ao PMDB, pretendem seguir o filão trabalhista com a construção de um memorial para Leonel Brizola. Mesmo sem anunciar nenhuma homenagem, Marcello Alencar, cacique do PSDB fluminense, não renega a fonte de que se beneficiou nos tempos em que esteve no PDT.

Debates – Cesar Maia, Garotinho e Alencar buscam ungir-se da simpatia que
Getúlio ainda goza com boa parcela do eleitorado. Por conta da data, foi detonada nas últimas semanas e se prolongará pelos próximos dias uma programação interminável de debates, seminários e mesas-redondas que discutem em todo
o Brasil o legado de Getúlio Vargas. Uma destas palestras foi protagonizada
pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, no dia 13 de agosto. Aos que compareceram ao auditório do jornal O Globo, no Rio, Fernando Henrique sublinhou a importância histórica de Getúlio e até reconheceu que algumas de suas iniciativas na economia foram adequadas para a época – apesar de, logo em seguida, repetir que sua estratégia pertence ao passado. De qualquer forma, o simples fato de o ex-presidente ter dedicado duas horas de seu precioso tempo justamente para discorrer sobre Getúlio, realça a permanência do personagem e indica que, ao contrário do que FH anunciou há dez anos, ainda está longe o fim da Era Vargas.