Na tarde da segunda-feira 16, procuradores em
Brasília e em Goiânia trocavam argumentos em sucessivos telefonemas para iniciar a redação do texto da primeira ação judicial contra o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que toda semana é forçado a dar esclarecimentos sobre sua vida fiscal e patrimonial. A ação do Ministério Público de primeira instância seria feita com base no artigo 350 do Código Eleitoral, pelo qual omitir bens ou fazer declarações falsas à Justiça eleitoral é considerado crime e pode até levar à reclusão. Com a declaração de bens apresentada pelo próprio Henrique Meirelles ao Tribunal Regional Eleitoral de Goiás em 5 de julho de 2002 e os dados fiscais do presidente do BC, o MP constatou uma discrepância de aproximadamente R$ 45 milhões. No mesmo dia, no Palácio do Planalto, o chefe da Casa Civil, ministro José Dirceu, embaralhou toda sua agenda para fechar a redação da Medida Provisória que blindaria Meirelles livrando-o do constrangimento de processos na primeira instância e de surpresas desagradáveis, como pedidos de prisão e batidas da polícia no Banco Central. Até as paredes do Planalto ouviram Dirceu comentar sobre os procuradores. “Eles estão prontos para pedir a prisão do Meirelles”, disse Dirceu a mais de um interlocutor. Na terça-feira 17, Dirceu repetiu a mesma coisa em um jantar em Brasília. Ninguém sabe como o ministro captou a informação sobre o suposto pedido de prisão e se ela era verdadeira, mas desde a edição extra do Diário Oficial na noite da segunda-feira, Meirelles se tornou o 35º ministro do governo. A ofensiva tirou os procuradores do encalço de Meirelles. A partir de agora, a iniciativa de qualquer ação é privilégio do procurador-geral da República, Cláudio Fontelles, nomeado pelo presidente Lula. Boa parte dos mais de 100 ofícios disparados pelo MP para cartórios e repartições públicas pedindo informações sobre Meirelles vai agora para as mãos seguras de Fontelles.

A ginástica jurídica do governo pode gerar dores de cabeça. Há três semanas, desde que ISTOÉ revelou o contorcionismo fiscal e patrimonial do presidente do BC, a oposição insiste em levá-lo a se explicar no Congresso. Pela Constituição era apenas um convite que dava a Meirelles o direito de escolher dia e hora para falar. Agora, na condição de ministro, o convite se converte em convocação com data marcada pelo Congresso. Há outros problemas na pirueta jurídica do governo. Dois partidos de oposição bateram no Supremo Tribunal Federal denunciando a inconstitucionalidade da Medida Provisória que promoveu Meirelles. Como ministro, ele não seria mais subordinado a Antônio Palocci, titular da Fazenda. Como presidente de autarquia, Meirelles não poderia jamais ser ministro de Estado. E, mais estranho, seria um alto funcionário sabatinado pelo Senado e, ao mesmo tempo, demissível pelo presidente da República.

Além de superar as barreiras no Judiciário, o governo terá de enfrentar a corrida de obstáculos no próprio Congresso. Ninguém gosta de perder poder – e o Senado, onde a maioria governista é mais instável, dificilmente dará esse espaço ao Planalto. O gesto de Lula é uma ousadia que nem seus antecessores Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso tentaram. Em 1990, Ibrahim Eris teve de se esconder na sala do 4º andar do edifício do banco, enquanto a Polícia Federal vasculhava a sala da presidência, no 20º andar, dando tempo aos advogados para cavar o habeas-corpus que o livrou da prisão. Em 1999, Francisco Lopes, já ex-presidente do BC, recebeu voz de prisão na CPI do caso Marka/FonteCindam e teve seu apartamento no Rio vasculhado pela PF. Apesar de ter a polícia no cangote dos dirigentes do BC, nem Collor nem FHC cogitaram da idéia de um escudo que o PT velho de guerra, certamente, condenaria com a veemência habitual. “É uma afronta à Constituição”, critica o líder do PFL na Câmara, deputado José Carlos Aleluia (BA). “E antecipa a culpabilidade do dr. Henrique Meirelles, porque é como se o presidente dissesse: ‘Ele é culpado, sim, mas é amigo do rei, e por isso não vai ser punido’”, completa o parlamentar. “Propor isso agora cheira a casuísmo”, desconfia o senador Jefferson Perez (AM), líder do PDT. O ataque mais contundente partiu do líder do PSDB, senador Artur Virgílio (AM): “Meirelles é um ministro inconstitucional, temporário e crivado de suspeitas. É o maior golpe do governo na independência do BC.” Na multidão de críticas, destacaram-se duas vozes em defesa do Planalto: José Sarney e Professor Luizinho. Sarney afirmou: “O presidente do BC tem atribuições tão grandes e importantes para o país que deve ter status de ministro.” O líder do governo no Congresso ecoou: “A medida é necessária para melhorar a proteção legal ao cargo de presidente do BC.” Até governistas, xiitas ou não, criticaram. “É indefensável a idéia de uma MPM, Medida para Proteger Meirelles”, espetou o petista Chico Alencar (RJ). “Se realmente há onda de denuncismo, como o governo vem alardeando, não será restringindo poder de investigação do Ministério Público, limitando a liberdade de imprensa ou estendendo foro privilegiado ao presidente do BC que o problema será resolvido”, completa o deputado Antônio Carlos Biscaia (PT-RJ).

Vazamento – Antes da blindagem, o Planalto tentou outro truque para proteger Meirelles: a camuflagem. Os líderes governistas do Congresso começaram a desviar o bombardeio do presidente do BC para o presidente da CPI do Banestado, senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT), acusando-o de ser o responsável pelos vazamentos que deixaram o mercado e o Congresso à beira de um ataque de nervos. O choque entre PSDB e PT em torno da CPI paralisou os trabalhos da comissão, travou o Congresso e ameaçou detonar um conflito generalizado entre governo e oposição. Diante da troca de tiros, o presidente do Senado, José Sarney, adotou a atitude de sempre: abriu uma sindicância, a cargo do corregedor da Casa, o senador Romeu Tuma (PFL-SP), para tentar descobrir os responsáveis por vazamentos e supostas tentativas de extorsão de empresários, poupados de convocação pela CPI em troca de propinas. O PT palaciano, que agora não gosta de CPI, identificou no PSDB e no presidente da comissão a tática de investigar todo mundo e vazar a conta-gotas as denúncias que desestabilizariam a equipe econômica e o mercado. Mas, surpreendentemente, o foco da instabilidade acabou se dirigindo para o próprio PT, na figura do relator José Mentor (SP), curiosamente, homem de confiança do ministro José Dirceu e acusado de ser o autor de pedidos de quebra de sigilo em massa promovidos pela CPI. Incomodado com o carimb o, Mentor entrou de sola numa reunião de emergência, semana passada, com os líderes do governo e oposição, no gabinete do senador Ney Suassuna (PMDB-PB). “Eu não sou pau-mandado do Zé Dirceu”, adiantou-se Mentor, sem que ninguém perguntasse. Sereno, Antero sustentou: “Não sou eu quem diz, é o Zé Dirceu. Num jantar na casa do senador Tasso Jereissati, o ministro disse ao líder Artur Virgílio, na minha frente: ‘Eu não confio no Antero. Ele é incontrolável. Mas o Zé Mentor é meu, é de absoluta confiança. É um quadraço!’ Reclama do ministro, Mentor”, provocou Antero.

 

Um levantamento nos arquivos da CPI mostra que é do homem de confiança de Dirceu o requerimento nº 271 que pediria informações a todos os brasileiros que transitaram dólares pela conta CC5 do Banestado, um universo
estimado em 420 mil pessoas físicas. Mentor queria
que a Receita Federal abrisse os dados de todas as multinacionais com participação em empresas brasileiras. Tentou convocar também cinco diretores e um presidente do Banco Central – do governo FHC, é claro. Nos requerimentos nº 943 e 991, Mentor pede, simplesmente, todos os inquéritos e processos criminais, cíveis e trabalhistas do período 1996-2002 de 13 Estados brasileiros. No requerimento 422, ele pretende escarafunchar todos os contratos de câmbio de empresários e atletas de futebol no Exterior – entre eles o “Fenômeno” Ronaldo, do Real Madrid. O que mais chamou a atenção foram os requerimentos com quebra de sigilo tendo como alvo 29 executivos e banqueiros do sistema financeiro sobre os quais não havia suspeitas formais na CPI. Em duas propostas, ele pede à Receita Federal e ao Banco Central todos os documentos de operações do Bamerindus, HSBC, Bemge e Banco Real. Na última semana, soube-se que Mentor também trocou mensagens eletrônicas com Juscélio Nunes Vidal, apontado como gerente da empresa Beacon Hill no Brasil e preso na operação da Polícia Federal que engaiolou dezenas de doleiros rastreados graças à CPI do Banestado.

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