Um monstro pode ser visto também como um ser humano? A resposta vem do grande historiador alemão Joachim Fest, que escreveu uma das mais conceituadas biografias do ditador nazista Adolf Hitler (1889-1945). Ele também é o autor de Inside Hitler bunker’s, que deu origem ao filme Der untergang – Hitler und das ende des III Reichs (O declínio – Hitler e o fim do Terceiro Reich) que acaba de ir para as telas do cinema na Alemanha (ainda não há data prevista de estréia no Brasil). Fest ajudou o produtor Bernd Eichinger a fazer o filme que retrata os últimos 12 dias de Hitler, entre 20 de abril e 2 de maio de 1945, período anterior e posterior ao seu suicídio em um bunker construído embaixo da chancelaria em Berlim. A película foi apresentada apenas em duas sessões para jornalistas em Berlim e Hamburgo. E caiu como uma bomba na imprensa alemã antes mesmo de sua estréia, prevista para o dia 16 de setembro. A grande polêmica é porque o filme trata o ditador como um homem qualquer, que gostava de chocolate e afagava crianças. É a primeira vez na história do cinema que o Führer aparece, por exemplo, com uma voz suave ao dirigir-se às mulheres. “Hitler é um ser humano porque simplesmente pertence à raça humana. E uma das características do ser humano é a maldade. E essa maldade pode ser levada ao extremo. Assim fizeram Hitler, Stálin e Pinochet. É importante que as novas gerações conheçam essas personalidades históricas como elas realmente viveram. Até para entenderem aonde o homem pode chegar”, afirmou Fest em entrevista exclusiva a ISTOÉ pelo telefone, de sua casa em Norddeutscher Rundfunk, próxima a Hamburgo.

Para o historiador, nunca um ator conseguiu chegar a um resultado tão próximo da interpretação de Adolf Hitler como o suíço Bruno Ganz. “Ele é realmente muito bom. Sua interpretação é melhor que a de Anthony Hopkins (Adolph Hitler, 1981) e a de Alec Guiness (Os últimos dez dias de Hitler, 1972) porque existe uma grande dificuldade em retratar o líder nazista como ele era, com sua demência”, afirmou Fest. Ganz, 63 anos, que fez um anjo em Asas do desejo de Wim Wenders, está fisicamente muito parecido com Hitler, na época com 53 anos, cabelos grisalhos e gestos fortes. O sotaque está perfeito: Ganz usou fitas gravadas com a voz do ditador para caracterizar melhor seu sotaque. Os ataques de loucura do Führer são vistos em várias cenas, inclusive quando ele declara que a guerra está perdida. O tirano sempre achou que a guerra fosse rápida e decisiva, não contava com a resistência dos britânicos e muito menos com a contra-ofensiva soviética. O claustrofóbico bunker também é cenário para as bodas dele com Eva Braun (Juliana Köhler), com quem se casou dois dias antes de cometer suicídio. Até as mãos trêmulas causadas pelo mal de Parkinson aparecem quando ele contracena com as crianças que lutariam no Volkssturm (batalhão jovem).

Em uma coletiva em Berlim, Ganz afirmou que “teve que procurar o mal em si próprio” para conseguir retratar fielmente o Führer. O produtor Eichinger disse que tentou desmitificar o regime. “Procuramos atingir o máximo de realismo. Mas esse realismo somente pode ser dramatúrgico se for fixado no desenrolar brutal dos acontecimentos. E, portanto, não foi necessário acrescentar muito a isso, porque a realidade já está impregnada pela loucura.” Para Eichinger, trata-se de uma história “sem moralismo” e até hoje “reprimida” na Alemanha. Joachim Fest concorda e diz que é necessário que os alemães conheçam melhor sua história. “Um dos meus filhos nasceu em 1964, portanto, quase 20 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Assim como ele, existem duas gerações que precisam entender melhor o que se passou em nosso país. É uma juventude que não tem nada a ver com o neonazismo”, disse ele ao se defender de críticas que afirmam que o filme pode se tornar um símbolo para os herdeiros do Führer. “Temos que desmontar os clichês demoníacos para entender a histeria coletiva que levou milhões de pessoas a se identificarem com uma figura tão banal”, disse o ator Ganz.

Joachim Fest esteve acompanhando de perto as filmagens do diretor Oliver Hirschbiegel em Berlim, Munique e São Petesburgo, e diz que suas 200 páginas foram sabiamente traduzidas para a tela. O roteiro também foi baseado no diário de memórias da secretária de Hitler, Traudl Junge (Alexandra Maria Lara), morta em 2002, e nos relatos de seu telefonista, o major Freytag. Para Fest, uma das cenas mais marcantes é quando Magda Goebbels (Corinna Harfouch), mulher de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda do III Reich, mata suas seis crianças com veneno depois de saber do suicídio de Hitler. Magda, secretária do ditador, estava abrigada no bunker com o marido e seus filhos. Depois de matar os filhos, o casal Goebbels se suicidou. Segundo o tablóide alemão Bild, o espectador sai do filme “emocionado, perturbado e irritado”, perante um Hitler “demasiado humano”. Mas o ator Ganz garante que o público alemão está “suficientemente maduro” para suportar uma película desta natureza.