i51874.jpgPsiquiatra por formação e poeta nas horas vagas, o ex-líder sérvio Radovan Karadzic, 63 anos, passou mais de uma década como o criminoso de guerra mais procurado da Europa. Há pelo menos 18 meses, no entanto, Karadzic, apontado como o responsável pela maior atrocidade registrada no continente desde a Segunda Guerra Mundial, circulava com desenvoltura por Belgrado, a capital da Sérvia. Apresentava-se como Dragan Dabic, um especialista em “terapias alternativas” e “cirurgias bioenergéticas” que havia morado em Nova York, onde teria deixado a família. Em seu apartamento havia até uma foto dos “netos”: quatro crianças usando camiseta do time de basquete Los Angeles Lakers. Escondido atrás de cabelos e barbas longos e óculos de lentes grossas, o homem conhecido em todo o mundo como o “carniceiro dos Bálcãs” era tão amável e sorridente que acabou batizado de Papai Noel pelos garotos do prédio onde morava, uma construção em estilo soviético, dos anos 1970, no bairro Novi Belgrado, um enclave nacionalista da periferia da cidade.

Na porta do apartamento de 60 metros quadrados, uma placa trazia apenas o nome do arrendatário, Maksimovic, que vive na Itália. Não se tratava de um disfarce. Usando a identidade de Dragan Dabic – roubada de um camponês do norte de Belgrado –, Karadzic não parecia preocupado em ser discreto. Sempre vestido de preto, atendia em um consultório médico, representava a empresa de compostos vitamínicos Calivita, dava palestras pelo país afora e ainda escrevia uma coluna na revista Zdrav Zivot (Vida Saudável). “Ainda que não possamos mudar intencionalmente as funções autônomas de nosso corpo, podemos influenciálas indiretamente por meio dos itens como comida, bebida, cenas, sons ou aromas”, perpetrou o guru espiritual em um de seus últimos artigos. “Mas a maior influência sobre os acontecimentos do corpo são nossos pensamentos e sentimentos.”

i51875.jpgKaradzic é casado com Ljiljana, que vive na Bósnia com a filha do casal, Sonja. Seu personagem clandestino, porém, estava sempre acompanhado de outra mulher, uma morena chamada Mila, hoje procurada pelas forças de segurança. “Sempre que um carro ia buscá-lo, queria um lugar para ela. Se não tivesse, não entrava. Dizia que era o amor de sua vida”, relatou à imprensa Tanja Jovanovic, que trabalha na revista Zdrav Zivot. Ele também não se privava do lazer noturno. Apreciador da aguardente local slivovitz, costumava freqüentar um bar chamado Madhouse, reduto extremista que mantinha dependurado na parede sua foto como antigo líder sérvio na república da Bósnia-Herzegovina. De acordo com o depoimento do dono do Madhouse, ninguém jamais associou a figura de Dragan Dabic à de Karadzic. “Sua nova aparência física era tão convincente que ele se dava ao luxo de andar livremente por lugares públicos”, confirmou Vladimir Vukcevic, o procurador sérvio para crimes de guerra que cooordenou a operação que culminou na prisão de Karadzic na segundafeira 21.

Há relatos extraoficiais de que, antes de surgir sob o disfarce de Dragan Dabic, Karadzic havia encontrado abrigo em monastérios localizados em áreas remotas da Bósnia. Procurado desde 1996, ele é acusado pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (TPII) pelo cerco de 43 meses a Sarajevo, na Bósnia, que deixou cerca de 12 mil mortos, e pelo massacre de oito mil muçulmanos em Srebrenica, em 1995. Sua prisão ocorreu apenas duas semanas depois que o governo sérvio do premiê pró-Ocidente Mirko Cvetkovic assumiu o poder, determinado a integrar o país à União Européia (UE). O primeiro passo nesse sentido havia sido dado em novembro do ano passado, por meio de um pacto de associação, mas o acordo ficou condicionado à “plena cooperação” de Belgrado com o tribunal encarregado de julgar os crimes contra a humanidade ocorridos a partir de 1991, durante a Guerra dos Bálcãs (leia quadro à pág. 104). Para cumprir o acordo, o governo sérvio precisa ainainda localizar e prender dois outros acusados de peso: Ratko Mladic, comandante militar de Karadzic; e Goran Hadzic, ex-líder dos sérvios da Croácia.

Como o ex-presidente sérvio Slobodan Milosevic, morto em Haia em 2006, Karadzic já anunciou que pretende fazer a própria defesa no tribunal sediado na Holanda, para onde deve ser extraditado nos próximos dias. A vida atrás das grades não é novidade para a família de Karadzic. Seu pai, Vuko, exguerrilheiro chetnick (nacionalista), viveu boa parte da infância do filho nas prisões de Josip Broz Tito, líder do regime comunista instalado na então Iugoslávia em 1945. Seu sucessor, Milosevic, dedicou-se ao projeto de criar uma “Grande Sérvia”. Em 1992, quando as repúblicas da Croácia, de maioria católica, e da Bósnia, de maioria muçulmana, se tornaram independentes da Iugoslávia, os sérvios, incentivados por Belgrado, se rebelaram. A ação culminou na sangrenta guerra civil (1992-1995) que contabilizou 250 mil mortos e 1,8 milhão de refugiados.

Durante a guerra, Karadzic foi o representante máximo de Milosevic na Bósnia, embora nem sempre tenha sido visto como um assassino psicopata. O escritor Marko Vesovic, seu amigo de juventude, garante que Karadzic, antes da guerra, jamais fez qualquer referência depreciativa aos bósnios muçulmanos. Mas, no calor do conflito, o psiquiatra Karadzic usou arquétipos junguianos para explicar as insuperáveis diferenças “étnicas” entre sérvios, croatas e bósnios. O resultado foi o genocídio, cujos símbolos foram o selvagem cerco a Sarajevo e o massacre de Srebrenica, onde quase oito mil bósnios foram assassinados.