Cinco presidentes em apenas dez dias. Tanta rotatividade no poder não se via na Argentina desde 1943, quando um golpe militar derrubou o presidente Ramón S. Castillo. O líder daquela quartelada, general Arturo Rawson, mal teve tempo de esquentar o “sillón de Rivadavia” (cadeira presidencial) e foi substituído dois dias depois pelo também general Pedro Pablo Ramírez, que, por sua vez, seria derrubado pelo general Edelmiro Farrel antes de completar um ano no cargo. Desta vez, pelo menos, não houve protagonistas militares. Depois da queda do presidente Fernando de la Rúa, que renunciou no dia 20 de dezembro em meio à maior crise social e política da história argentina recente, a cadeira presidencial foi ocupada, durante 48 horas, pelo presidente do Senado, o peronista Ramón Puerta, já que o vice-presidente, Carlos Chacho Alvarez, havia renunciado em 2000 por divergências com De la Rúa. Às vésperas do Natal, a Assembléia Legislativa (sessão conjunta da Câmara e do Senado) elegeu o também peronista Adolfo Rodríguez Saá, governador da Província de São Luiz, para um mandato-tampão de dois meses, prevendo a realização de eleições diretas para presidente em março de 2002. Mas no domingo 30, uma semana depois da posse, Rodríguez Saá pediu o boné, pressionado pelos caciques peronistas que temiam suas ambições continuístas. Afinal, ele anunciou um programa de governo extremamente ambicioso para quem ficaria apenas dois meses na Casa Rosada (sede do governo). Assumiu o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Camaño. Diante do aprofundamento da crise e do temor de um vácuo de poder, no primeiro dia do ano a Assembléia mandou às favas as eleições diretas de março e elegeu, por 262 votos contra 21 e 18 abstenções, um presidente para completar o mandato de De la Rúa, que terminaria em dezembro de 2003. O escolhido foi o ex-governador da Província de Buenos Aires e atual senador peronista Eduardo Alberto Duhalde, 60 anos, que, ironicamente, havia perdido a eleição de 1999 para De la Rúa. “É hora de dizer a verdade: a Argentina está falida, quebrada”, admitiu o novo presidente, prometendo um governo de “salvação nacional”. “Não é hora de marchas partidárias. É hora do hino nacional”, proclamou, numa sutil alfinetada em Rodríguez Saá, que tomara posse com seus partidários entoando a marcha peronista na Casa Rosada. A eleição de Duhalde teve o apoio das agora oposicionistas União Cívica Radical (UCR, partido de De la Rúa), e da centro-esquerdista Frepaso, além da Ação pela República, do ex-ministro Domingo Cavallo.

“A gravidade da crise por que passa a Argentina não permite erros”, advertiu o novo mandatário, lembrando a temerária frase proferida pelo ex-presidente brasileiro Fernando Collor de Melo, quando disse ter somente uma “bala na agulha” para derrotar a inflação. “O modelo econômico vigente faliu a Argentina e colocou na indigência dois milhões de pessoas”, completou. Fraseologia à parte, Duhalde tem pela frente o grave desafio de desatar o nó criado pelo governo Carlos Menem – de quem, aliás, foi vice-presidente –, ou seja, a convertibilidade, que há dez anos atrela o valor do peso (moeda argentina) ao do dólar. “Essa paridade teve função importante quando se tratava de acabar com a hiperinflação que corroía o país, mas não poderia ser uma solução de longo prazo. A competitividade dos produtos argentinos foi arrasada, mas a paridade não se moveu”, disse a ISTOÉ Carol Graham, vice-diretora do Centro de Dinâmicas Sócio-Econômicas da Brookings Institution, de Washington. Além de manter a moratória da dívida externa de US$ 132 bilhões decretada pelo fugaz governo Rodríguez Saá, Duhalde preparava um pacote para desvalorizar o peso gradativamente, elaborado pelo novo ministro da Economia, Jorge Remes Lenicov.

Para evitar a quebradeira geral de empresas e famílias endividadas em dólares, o governo tentará desvalorizar o peso em 35%, estabelecendo-se então um novo patamar de paridade. Depois, o país buscaria negociar com organismos internacionais, como o FMI, uma ajuda de cerca de US$ 15 bilhões para permitir uma futura flutuação da moeda. Dessa maneira, raciocinam os economistas do governo, se a Argentina obtiver esses dólares, terá condições de evitar uma desvalorização descontrolada e o risco da inflação, através da intervenção do Banco Central no mercado cambial, como ocorre no Brasil. Fala-se também na possibilidade de atrelar o peso a uma cesta de moedas dos países que são os maiores parceiros comerciais da Argentina: o dólar (EUA), euro (União Européia) e o real (Brasil). Outra alternativa que o governo estuda para preservar a população dos efeitos mais perversos da desvalorização é a chamada “pesificação” da economia, ou seja, a conversão de dívidas denominadas em dólares para pesos. O problema dessa alternativa é que muitos bancos, que têm dívidas em dólares, perderiam muito dinheiro e poderiam quebrar. Concretamente, o governo vai garantir os depósitos em moeda de origem (dólar ou peso) por prazo indefinido; converter dívidas de até US$ 100 mil em pesos para pessoas físicas; congelar as tarifas públicas; manter os aluguéis em pesos por 180 dias e tabelar preços de produtos cujo mercado é oligopolizado, como combustíveis e medicamentos. Segundo o economista René Garcia, ex-diretor da CVM, “trata-se de uma série de tabelamentos na tentativa de fazer uma desvalorização controlada”.

As especulações sobre a desvalorização já provocaram um aumento de preços entre 25% e 40% em alguns produtos como alimentos básicos, eletrodomésticos e máquinas. O novo governo ainda não decidiu se vai manter o “corralito” (curralzinho), como é chamada a limitação de retiradas bancárias em US$ 1 mil por mês imposta nos últimos dias do governo De la Rúa. Seja como for, se há uma unanimidade hoje na Argentina é que a transição para um novo padrão de economia será tudo, menos incruento. A questão é saber se os argentinos, que continuam mostrando nas ruas com “panelaços” que estão saturados de pagar o ônus da crise, estarão dispostos a fazer novos sacrifícios. Impostos, ainda por cima, por um governo que nem sequer foi eleito.