Numa fábula de tons sombrios, o escritor tcheco Franz Kafka narra a espera sem fim de um homem diante de uma porta guardada por um soldado. A passagem o levaria à Lei (assim mesmo, em maiúsculo). O pobre coitado passa a vida inteira esperando a autorização para entrar pela porta. Antes de morrer, já velho, ouve do soldado que aquela passagem havia sido feita para ele. E que, agora, quando está morrendo, pode fechá-la e abandonar seu posto. Não é preciso muito esforço para reconhecer o eco destas linhas tristes em O terminal (The terminal, Estados Unidos, 2004), em cartaz nacional na sexta-feira 10, brilhante exercício cinematográfico de Steven Spielberg. Seu herói, Viktor Navorski (Tom Hanks), é um viajante do Leste Europeu que, por ter o visto recusado, passa nove meses sem poder sair do free shopping do aeroporto JFK e se dirigir livremente para as ruas de Nova York. Ele também não pode voltar para o seu país, a imaginária Krakozhia, que caiu em poder de militares durante o seu vôo e não é mais reconhecida pelo governo americano. Tornou-se um cidadão de lugar nenhum. Em determinado momento, o chefe do setor de imigrações, Frank Dixon (Stanley Tucci), até que lhe dá a dica para o detalhe de que os portões de acesso à rua estarão livres do meio-dia ao meio-dia e cinco. Mas Navorski não sai.

Embora seja judeu como Kafka – e não são poucos os especialistas do escritor tcheco que lhe atribuem o estilo à ascendência – Spielberg realizou uma fábula luminosa. A absurda história de Navorski parece mais afeita à ingenuidade de um Frank Capra e ao humor burlesco de um Jacques Tati que ao cinismo de um Samuel Beckett, autor de Esperando Godot. Depois do 11 de setembro, é difícil acreditar que uma pessoa suspeita, sem falar nada de inglês, possa viver nove meses no terminal de aeroporto americano. Especialmente o de Nova York. Mas em razão da esplêndida interpretação de Tom Hanks, o que seria um disparate ganha graça espontânea. O que encanta em Navorski é a disposição de não trapacear para entrar nos Estados Unidos. Em sequências quase chaplinianas, ele é visto através dos monitores de Dixon. A expressão carrancuda do burocrata lembra a daqueles soldados que perseguiam Carlitos.

Nos primeiros dias, Navorski forra o estômago com biscoitos caprichosamente recheados de mostarda e ketchup. Exímio carpinteiro, improvisa uma cama – não sem os tombos costumeiros no gênero burlesco – com cadeiras em desuso. Seu quarto vira uma sala vazia de um terminal vazio. Para espanto de Dixon, passa a circular entre as lojas chiques vestido de roupão de banho. Seu destino é a pia do banheiro masculino. Mas, aos poucos, o krakozhiano começa a entender a lógica americana, aprimorando, inclusive, o inglês. Ser marido de Margarita Ibrahimova, descendente de búlgaros, ajudou Hanks a florear o sotaque do dialeto do Leste Europeu falado pelo viajante. A essa altura, o espectador acredita em tudo que ele faz. Como servir de garoto de recados para um funcionário mexicano de uma fornecedora de comidas para tripulantes, interessado em seduzir a policial da imigração. Em troca, ele ganha refeições fresquinhas. Outra companhia é um velho faxineiro indiano que se diverte vendo as pessoas escorregarem no piso molhado. Meses adiante, Navorski apaixona-se pela rejeitada e belíssima aeromoça Amelia, vivida por Catherina Zeta-Jones, provando que tudo é possível no mundo de vidros, lojas de grife, música ambiente e escadas rolantes de Spielberg.

Por mais imaginosa que possa parecer, a aventura americana de Navorski foi inspirada num caso real, vivido pelo refugiado iraniano Merhan Karimi, que mora sem passaporte há 16 anos no Aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Segundo consta, ele recebeu US$ 300 mil pelos direitos da sua história. Mas não é essa garantia de verossimilhança que torna O terminal tão envolvente. Muito pelo contrário. Spielberg apostou inteiramente na fantasia. Mandou construir uma réplica quase exata de um terminal de aeroporto num hangar abandonado, possibilitando vôos inimagináveis à câmera de Janusz Kaminski. Por duas horas, esse local frio e hoje carregado de medo virou um mundo à parte, onde a solidariedade e o amor podem aflorar. Uma fábula americanista, por certo, mas feita com estilo e maestria.


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