Você já deve ter vivido cenas semelhantes a essas. Acordar com o barulho de nervosas buzinas de carros, enfrentar a fúria de motoristas engarrafados no trânsito, conviver com um chefe tirano, almoçar falando alucinadamente ao celular e, ao final do dia, voltar, exausto, para casa. É o rolo compressor do cotidiano que passa por cima da vida de milhares de pessoas, todos os dias, no mundo inteiro, e com cada vez mais freqüência. Qualidade de vida não se resume a saúde física e dinheiro suficiente para comprar tudo aquilo que se deseja. Por isso, uma corrente de pensadores europeus, como o sociólogo italiano Domenico De Masi e o filósofo alemão Hans Enzensberger, vem chamando a atenção para a importância de um conjunto de seis princípios essenciais – direitos de todo ser humano – que estão cada vez mais escassos nos dias de hoje: ambientes saudáveis, espaço, tranqüilidade, autonomia, contemplação da beleza e tempo. Esse é o verdadeiro luxo que leva ao bem-estar, o mantra do século XXI. O que realmente vale a pena na vida não está ligado ao material e pode ser usufruído por qualquer pessoa, garantem os teóricos. E constatam muitas pessoas que já despertaram para essas necessidades (leia quadros).

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AMBIENTE SAUDÁVEL Quando se casou, há dois anos, a advogada Daniela Cestaro, 31 anos, trocou um apartamento por uma charmosa casa com quintal em um condomínio próximo da capital paulista. Lá, ela usufrui de um parque com área de preservação ambiental e uma pista para caminhada, onde vai todos os dias com as cachorras Mel (foto) e Cindy. "Aqui é seguro, respiro ar puro, não enfrento trânsito, convivo com vizinhos. Coisas que eu buscava muito e que não encontrava na loucura de São Paulo", explica Daniela, que perdia três horas diárias em engarrafamentos. Todos os meses chegam novos moradores ao seu condomínio, pessoas com valores parecidos aos seus. Segundo a psicanalista Sueli Gevertz, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, quem escolhe viver em ambientes ecologicamente saudáveis e seguros deseja também uma mudança de estado de espírito. "A pessoa procura um espaço para desacelerar, esquecer exigências e tarefas a cumprir", diz. Dica da mestra Miao Shang, do templo budista Zu Lai, em Cotia (SP), para quem não pode morar próximo ao verde: se quer natureza sempre por perto, plante árvores; se deseja um mundo menos violento, seja gentil e evite as pequenas rusgas do dia-a-dia.

O alemão Enzensberger enumerou os seis princípios citados acima quando detectou que eles estavam cada vez mais distantes do dia-a-dia das pessoas, principalmente daquelas que vivem o cotidiano autômato das grandes cidades. Há 30 anos, no máximo, espaço, tranqüilidade e tempo, por exemplo, não representavam um bem a ser conquistado. Eles fluíam confortáveis em casas com quintais, noites silenciosas, trânsito sob controle e refeições com a família. Hoje, são um objeto de desejo, para muitos, quase inalcançável.

Um luxo tal qual um carro do ano, um aparelho eletrônico de última geração ou uma bolsa de grife. Por isso, nos últimos anos, a definição de luxo mudou. Antes, era visto como um bem que diferenciava uma pessoa das demais. Produtos caros e raros que poucos podiam comprar e mostrar. Com a produção – e a imitação – de grifes em larga escala, o conceito clássico entrou em crise. Hoje, o significado é mais nobre e está ligado às experiências de cada um. "É algo tão sublime que não precisa ser exibido para ninguém. Tem valor em si mesmo", explica o filósofo Luiz Felipe Pondé, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). O psiquiatra Jorge Forbes endossa: "O verdadeiro bem-estar não pode ser resumido a objetos ou lugares, porque não há mais a padronização da felicidade. O que torna um indivíduo único são as suas expressões singulares, que não podem ser medidas em dólares ou euros", analisa.

Por isso é que, com uma boa revisão de prioridades, seguida de algumas mudanças de atitudes, é possível reverter esse quadro sufocante, que neutraliza o prazer de grande parte da população adulta mundial, submersa num mundo de competitividade e stress generalizados.

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ESPAÇO O empresário baiano Antônio Carlos Leite da Silva, 54 anos, passou a infância numa fazenda. Aos 17, foi viver em São Paulo para assumir a gerência de um banco e estranhou imediatamente a falta de espaço nos imóveis da cidade. "Morei num apartamento pequeno e depois numa casa de dois quartos. Era um sofrimento para quem nasceu cercado pela natureza", diz. Depois de casado, seguiu para Salvador, na Bahia, e escolheu um apartamento espaçoso. "Apesar de ser um tríplex, ainda não estava satisfeito, faltava o verde", conta.

Quando sua primeira filha nasceu, tomou a decisão de se mudar. Há 20 anos, Antônio vive com a família numa chácara de seis mil m2, 70% de natureza, com 200 m2 de área de piscina e deque, cavalos, cinco quartos, sala e cozinha amplas no bairro de Itapuã. Na ocasião, a compra foi criticada por amigos, que argumentavam ser um risco morar num local sem segurança e estrutura, longe do centro da cidade. Antônio não teve medo e investiu no seu sonho. A coragem compensou. O crescimento da cidade valorizou o bairro e garantiu segurança à família. Mas, para ele, o mais importante é ver a sua prole unida, compartilhando do amplo espaço. "Minhas filhas trazem os amigos e namorados para cá todos os fins de semana. Aqui sempre há um estoque de cerveja e petiscos para a turma. Fico satisfeito em ver que elas sentem prazer em estar perto dos pais. As festas são constantes e espaço é o que não falta."

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TRANQUILIDADE A produtora cultural Bárbara Simonetti, 30 anos, de São Paulo, tem uma vida corrida, sem horários. Não é incomum ela começar as atividades do dia muito cedo e só parar já tarde da noite. Para manter a serenidade, ela adotou há dois anos o budismo e não dispensa a meditação diária, dez minutos ao acordar, outros dez antes de dormir. "É uma hora de privacidade, essencial para mim. Esse momento me leva a uma interiorização profunda e me traz tranqüilidade", diz. A produtora, que até o ano passado era gerente comercial de uma empresa de entretenimento, conta que já foi muito estressada. "Hoje dirijo com calma e atenção, durmo melhor. Olhar para dentro me fez mais paciente", reconhece. As interferências do mundo moderno – vindas de todo tipo de tecnologia como celular, e-mails, sites de relacionamento e conversas instantâneas na internet – invadem a privacidade das pessoas. Isso prejudica as necessidades individuais, como o silêncio e a tranqüilidade, que são deixadas de lado. Aquietar o pensamento é fundamental para entrarmos em contato com o melhor de nós mesmos, diz Márcia De Luca, fundadora do Centro Integrado de Yoga, Meditação e Ayurveda (Ciyman), em São Paulo. "É a única maneira de focar em nossas atividades e vivenciar o momento presente, diminuindo a ansiedade e alcançando o equilíbrio." Márcia ensina que dez minutos por dia em silêncio ajuda – e muito – uma pessoa a se conectar com os próprios sentimentos e refletir sobre seus caminhos.

"Comece a ser agora o que você deseja ser lá na frente", diz a professora de filosofia da PUC-SP, Dulce Critelli, coordenadora do Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana (Existentia). "Não espere o dia em que trabalhará menos. Reserve desde já tempo para você fazer o que quer e gosta." Segundo a filósofa, é comum o homem criar ilusões de impossibilidades – como não ter tempo para ler ou ligar para os amigos. "Observe-se e crie novos hábitos. Não podemos mudar o mundo, mas podemos modificar nosso comportamento e mentalidade", afirma.

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AUTONOMIA Há uma década, o gaúcho Jorge Mello, 46 anos, era analista de sistemas de um banco. Ganhava bem, tinha o carro do ano e um bom apartamento, mas não estava feliz. "Ansiava pelo fim de semana, o cotidiano me sufocava", lembra. Ele largou o emprego, deu um giro pelo mundo e, na volta, decidiu priorizar as coisas das quais gostava. Começou a praticar artes marciais e iniciou o processo de formação para terapeuta corporal, sua atual profissão. Hoje, há dias em que trabalha mais do que na época do banco. "Mas o desgaste é menor e o prazer é maior", comemora. Mello é o principal divulgador no Brasil do movimento Simplicidade Voluntária, que prega uma vida baseada nos valores individuais. "É um grande erro ir atrás do sucesso que atende às expectativas da sociedade", afirma. A liberdade conquistada por ele é um sonho de consumo para a maioria dos profissionais. Presas a regras, trabalhando sob pressão num mundo altamente competitivo, as pessoas vêem a autonomia desaparecer para se submeterem às exigências do mercado. "Saber que existem dezenas de formandos bem preparados querendo seu lugar faz com que o indivíduo viva em função da carreira. Chega um momento em que esse excesso de dedicação se torna estafante", diz Lia Diskin, fundadora da Associação Palas Athena, em São Paulo. A procura por cursos de filosofia na instituição aumentou 30% em cinco anos. Os novos alunos buscam caminhos para refletir sobre a pergunta que surge quando a maioria está alcançando o topo da carreira: Será que cheguei ao cume errado? "Eles percebem que até as amizades se restringem aos relacionamentos profissionais", afirma Lia.

Neste contexto, dois espaços são fundamentais na busca pela qualidade de vida: a casa e o ambiente de trabalho, onde passamos a maior parte do tempo. "As expectativas em relação à residência são maiores nos dias de hoje. Há mais atenção à exposição ao sol, à posição, à natureza, ao isolamento acústico", escreveu o filósofo francês Gilles Lipovetsky no livro A felicidade paradoxal. O mercado imobiliário já percebeu isso e investe fortemente nas áreas de lazer dos prédios, que mais se parecem com os quintais de antigamente. Árvores, jardins, locais para as crianças brincarem, além de confortos como salas de ginástica e piscina, integram os mais novos lançamentos. Internamente, a tendência são plantas sob medida e poucas paredes, com o objetivo de ampliar o espaço. As empresas também sabem da importância de proporcionar um local de trabalho saudável a seus funcionários como forma de estimulá-los e, assim, aumentar a produtividade. "As mais modernas oferecem ambientes generosos, mesas amplas em ilhas de trabalho, área de lazer. Algumas têm até duchas e salas de jogos", afirma a designer Ruth Fingerhut. O trabalho também caminha para deixar de ser o maior objetivo da vida. "As pessoas não se portam mais como máquinas, elas mostram que precisam de outra rotina. E os empregadores perceberam que devem reconquistar o trabalhador ou perderão talentos", alerta a filósofa Dulce.

i52074.jpgCONTENPLAÇÃOP DA BELEZA O músico carioca Leandro Caputti, 28 anos, nem precisa sair de casa para contemplar a natureza exuberante do Rio de Janeiro. Não bastasse a vista para a Lagoa Rodrigo de Freitas, o apartamento que ele divide com dois amigos também fica de frente para a Mata Atlântica. Na sala banhada de luz natural, ele dedica ao menos dez minutos à meditação, tendo como pano de fundo um vasto verde. Apreciar o pôr-do-sol em Ipanema ou subir uma trilha também são programas típicos de seus finais de semana. O contato com lugares belos ensinou Caputti a ser mais tolerante. "Precisamos de um contraponto positivo na correria diária", considera. A aridez do cotidiano costuma produzir angústia e mal estar, mas esse desequilíbrio pode ser combatido – basta reservar um tempo do dia para contemplar a beleza. "A desconexão com o belo torna a vida mais difícil, rígida, impositiva", diz Lia Diskin, fundadora da Associação Palas Athena, em São Paulo. Por isso, o exercício é buscar a beleza, seja na natureza, seja em obras de arte, objetos, ou pessoas. Mesmo não tendo o privilégio geográfico do músico Caputti.

Quem não pode transformar a casa ou o trabalho num oásis de bem-estar, tem como saída recorrer ao chamado "mercado da paz", que oferece cursos de ioga, meditação, livros de auto-ajuda e terapias. "Muitas pessoas estão presas ao trabalho 14 horas por dia. É uma forma de aproximá-las de suas essências", afirma Márcia De Luca, fundadora do Centro Integrado de Yoga, Meditação e Ayurveda (Ciyman), de São Paulo. Às vezes, medidas simples, como desligar o celular na hora do almoço e não acessar emails no fim de semana, fazem toda a diferença, pois o indivíduo deixa de estar disponível e conectado 24 horas por dia. "Você pode perder uma oportunidade de trabalho ou um convite, mas consegue relaxar e não perder o sono. Depois recupera o que deixou de ganhar", aposta o filósofo Luiz Felipe Ponde, da PUC-SP. O fundamental é não perder de vista o que realmente é essencial: "É preciso ter coragem para assumir os seus próprios desejos e se responsabilizar por eles. Muitas pessoas têm medo da felicidade porque temem fracassar e não ter a quem culpar. Esse sentimento desloca o indivíduo do grupo, o que pode gerar uma crise de identidade, um receio de não pertencimento", analisa o psiquiatra Jorge Forbes. O resgate de valores adormecidos, como pregam os pensadores europeus, é um bom começo para a promoção dessas mudanças em busca do bem-estar. O melhor é que todos têm esses instrumentos dentro de si.

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TEMPO Há 16 anos, Mário Arone, 34, era sócio de uma construtora civil. Mesmo sendo patrão, trabalhava como um escravo. Todos os dias, acordava às 5h e só voltava para casa às 22h. "Era uma loucura, não tinha vida, só preocupação", afirma. Além de fazer malabarismos mensais com o orçamento do negócio, prejudicado pelos calotes de clientes, tinha que administrar a folha de pagamento de 68 funcionários. O martírio durou 14 anos. Estressado, com a saúde abalada e sem tempo para conviver com os filhos, decidiu passar 45 dias na Itália para repensar a sua vida. Na viagem, enfrentou momentos de angústia. "Queria largar tudo e morrer. Não agüentava mais a ausência de tempo e não sabia o que fazer para mudar", conta. Quando voltou ao Brasil, ganhou coragem e decidiu dar uma guinada. Mário desistiu da empresa e optou por um trabalho que lhe permitisse administrar melhor o seu tempo. Hoje ele é representante comercial e está nas nuvens, apesar de ter uma renda menor do que nos tempos de empresário. Vai uma vez por semana ao escritório, visita dez clientes por semana e trabalha com um notebook onde estiver. O tempo livre é preenchido com um curso superior de engenharia, aulas de inglês e italiano, desenvolvimento de projetos na área política, atuação em grupos de jovens empreendedores e, o mais importante, participação na criação dos filhos. "Ter tempo livre não significa ócio, mas cada um ter a oportunidade de fazer tudo que lhe dá prazer", define o psiquiatra Jorge Forbes.

Colaboraram Adriana Prado e Leoleli Camargo