O secretário-executivo do Ministérioda Cultura esclarece pontos polêmicosda Ancinav e diz que a reação inicial foiuma tentativa de abortar o projeto

Passado o vendaval, o diálogo.
É assim que o secretário-executivo do Ministério da Cultura, Juca Ferreira, vê o momento em torno do polêmico projeto de criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav). Torpedeado por todos os lados por causa de alguns artigos considerados totalitários, o projeto foi revisto pelo governo e teve os pontos polêmicos excluídos. Juca Ferreira, o homem forte do Ministério e braço direito do ministro Gilberto Gil, acha que agora, depois da polêmica, cineastas, produtores de vídeo e o comando das tevês abertas e fechadas vão perceber que a Ancinav “busca apenas estabelecer normas para as novas tecnologias”. Ele acha também que o grande potencial da produção de tevê no Brasil precisa ser mais bem aproveitado, tanto com relação às grandes redes quanto aos pequenos produtores espalhados por todo o País. Em entrevista concedida a ISTOÉ, Juca acenou com a manutenção de financiamentos oficiais ao cinema e com um ambicioso plano de construção de mais mil salas por todo o Brasil, com recursos emprestados a juros muito baratos pelo BNDES.

ISTOÉ – O projeto de criação da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav) foi recebido com muitas críticas e acusações de que o governo pretendia controlar a produção intelectual e estabelecer uma espécie de censura. O governo captou essas reações e mudou o projeto inicial. Como está a situação hoje?
Juca Ferreira

A reação inicial, a meu ver, foi exagerada, propositadamente exagerada, em uma tentativa de abortar o projeto antes que ele se tornasse conhecido do público, criando um estigma que o inviabilizasse. Na verdade,
esta é a quarta tentativa de criação da Ancinav, depois de três no governo Fernando Henrique. E começamos a receber apoio ao projeto. O ex-ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, por exemplo, publicou um artigo defendendo a Ancinav, dizendo que não tinha visto nada de censura ou controle do pensamento, e sim uma positiva legislação favorável à cultura brasileira.

ISTOÉ – Para que é preciso uma agência reguladora de cinema?
Juca Ferreira

É uma realidade, não só no Brasil, mas no mundo inteiro, que a revolução tecnológica por que passa o cinema e o audiovisual tem criado novas mídias, novos suportes, integração entre as diversas plataformas. Hoje, 70% da renda de um filme vem de fora das salas de projeção, de outros suportes como DVDs, vídeos, venda para exibição em tevês abertas e fechadas. Temos agora até a possibilidade da transmissão de conteúdo via celulares. Tudo isso com uma legislação defasada, parte dela anterior a 1964.

ISTOÉ – Os dois artigos criticados e considerados como matriz de controle intelectual e de censura foram retirados. Eles eram realmente necessários?
Juca Ferreira

Eram artigos da Constituição. Tinham sido usados como técnica legislativa de usar artigos de uma lei maior na redação de outra lei menor. Também se pode usar uma técnica diferente, deixando de lado artigos de leis maiores exatamente para evitar que ocorram problemas de interpretação, por estarem fora de contexto. Ao que tudo indica, foi isto que ocorreu com a idéia original. A decisão do ministro Gilberto Gil foi boa, porque limpa a discussão.

ISTOÉ – O debate agora tende a ficar mais centrado nos aspectos técnicos, da necessidade de se ter a agência, de se englobar as novas mídias?
Juca Ferreira

Sim, foi um dos objetivos para a retomada do diálogo. O universo em
debate é enorme, complexo. Não temos uma legislação coerente que dê conta do todo. Na verdade, muitos países já têm legislações sobre essas novas mídias, essas plataformas tecnológicas em constante evolução. No Japão, é feita periodicamente uma atualização legislativa, exatamente porque é preciso acompanhar a velocidade das mudanças causadas pela tecnologia. A Austrália e a Coréia do Sul são outros países que já possuem leis atualizadas. Os Estados Unidos já estão modernizando suas leis em razão das mudanças econômicas causadas pela verticalização da atuação das empresas. Para termos uma economia do cinema e audiovisual forte no Brasil, precisamos atualizar nossa legislação e criar mecanismos de regulação adequados.

ISTOÉ – O sr. acredita na retomada do diálogo, depois das mudanças feitas no projeto?
Juca Ferreira

O diálogo nunca foi interrompido. Uma coisa é o que sai na mídia, outra
são as conversas bilaterais, que nunca pararam. Tivemos o cuidado e a paciência de não responder às críticas que consideramos injustas no mesmo tom. Deixamos passar a onda, pois compreendemos que existem grupos com interesses corporativos que têm dificuldade de discutir abertamente as questões. Nós recebemos muito apoio porque, reitero, essa não é uma proposta que inventamos do nada, é uma reivindicação histórica do setor. O diálogo está se espalhando. Há fóruns na internet, os cineastas estão debatendo. Recebemos muitos apoios no Festival de Gramado. O clima de diálogo, de discussão criativa já está criado.

ISTOÉ – Cacá Diegues, por exemplo, um dos cineastas que bateram pesado no projeto, voltou a conversar com o governo?
Juca Ferreira

Cacá e o ministro Gil são amigos de longa data. Tanto o ministro quanto eu já falamos várias vezes com o Cacá por telefone exatamente para manter a discussão, o diálogo aberto. Nós nos sentimos injustiçados com a reação inicial, pois nada no projeto era direcionado para o controle da liberdade de expressão. Tanto Cacá quanto Arnaldo Jabor, em outras ocasiões, tinham sido a favor de muitos pontos do projeto, inclusive quanto às taxações.

ISTOÉ – Essa questão das taxas, o que há de realidade no projeto?
Juca Ferreira

Essa é uma discussão legítima. A economia do audiovisual no País, especialmente do cinema, é amesquinhada. Mais de 93% dos municípios brasileiros não têm um cinema sequer. Somente 8% dos brasileiros vão ao cinema. Quando se fala de boom do cinema brasileiro, ele vem de números extremamente acanhados. Temos que pensar em uma expansão dessa economia. E ela não pode ser mais baseada apenas em investimentos a fundo perdido pelo governo. Somos responsáveis pelo estímulo à atividade, e estamos cumprindo nosso papel, com aumento no índice de renúncia fiscal. Mas isso não é suficiente. Temos que conseguir recursos adicionais e algumas dessas taxas são voltadas para isso, com o dinheiro sendo reinvestido na produção. Temos que ampliar o número de salas de exibição, aumentando o faturamento mesmo com ingressos mais baratos. O Brasil tem apenas 1.800 salas de exibição, o que explica o pequeno porcentual de brasileiros que vai regularmente ao cinema.

ISTOÉ – Como mudar isso?
Juca Ferreira

Estamos negociando com o BNDES uma linha de financiamento, a juros subsidiados, para construção de mais mil salas de cinema em todo o País, dando preferência às regiões metropolitanas e às cidades com mais de 100 mil habitantes. Isso é mais que a metade do que existe hoje.

ISTOÉ – Que outros problemas o pequeno número de cinemas causa à indústria nacional?
Juca Ferreira

Foram produzidos, em 2001 e 2002, mais de 80 filmes no Brasil. Pouco mais de 30 foram exibidos. Primeiro, por causa da concorrência desleal do cinema americano. Segundo, pela distribuição monopolizada, pelo fato de as cadeias serem, na grande maioria, de grupos multinacionais. Terceiro, pelo pequeno número de cinemas. Não adianta investir na produção se não houver possibilidade de veiculação, de exibição. Há necessidade premente de novos investimentos e de reinvestimentos e uma parcela tem que ser de responsabilidade do setor.

ISTOÉ – Uma das críticas à cobrança de taxas nas cópias de filmes é que encareceriam o produto, desestimulariam os laboratórios nacionais, causariam falências e desemprego.
Juca Ferreira

Isso não é verdade. O filme Homem-aranha ocupou cerca de um terço das salas de cinema no País. Shrek 2 ocupou outro terço das salas. Já o filme da Turma da Mônica, que é um sucesso entre o público brasileiro, teve que ser provisoriamente retirado de cartaz porque não havia salas disponíveis. Isso traz uma necessidade de regulação. A taxa que pretendemos para quem faz mais de 600 cópias de filmes estrangeiros, como forma de apoio ao cinema brasileiro, ficaria em R$ 600 mil. Esse valor é insignificante diante da renda de Homem-aranha, que em pouco mais de um mês alcançou R$ 53 milhões. Alguém acredita que a Columbia, a Disney, etc. vão deixar de fazer 600 cópias por causa de R$ 600 mil? Hoje é que existe uma distorção, pois, para fazer as mesmas cópias, gastam-se somente R$ 3 mil. Para os filmes nacionais a nova taxa, para 600 cópias, é de R$ 60 mil. De qualquer modo, mesmo esses valores estão abertos ao debate.

ISTOÉ – Essas mil novas salas que o governo pretende financiar, ampliando o mercado exibidor, estarão abertas a qualquer investidor, incluindo as distribuidoras tradicionais brasileiras e estrangeiras? Haverá algum tipo de cota mínima para os filmes nacionais?
Juca Ferreira

Vamos definir isso em conjunto com o BNDES e os investidores. É claro que serão salas de padrão moderno, para exibir todo tipo de filme, brasileiro ou estrangeiro. É preciso que haja retorno financeiro. Mas devemos estabelecer regras que garantam espaço aos filmes nacionais. Uma das idéias é que, pelo menos durante o período de pagamento do financiamento, se destine um porcentual mínimo de dias, a ser discutido entre todos, ao filme nacional. Mas não iremos impor cotas acima da capacidade de atrair público de cada filme.

ISTOÉ – O Ministério já foi procurado por empresários interessados nesses créditos?
Juca Ferreira

A polêmica inicial sobre a Ancinav atrapalhou esse aspecto puramente econômico. Mas agora o quadro começa a mudar e o interesse tem sido manifestado. O Luís Severiano Ribeiro, um dos maiores exibidores nacionais, já nos procurou. Ele pretende fazer mais cinemas, e uma linha de crédito em condições favoráveis seria, em sua opinião, fundamental. E outros virão.

ISTOÉ – O financiamento às grandes produções nacionais vai continuar?
Juca Ferreira

Claro, são os filmes de grande bilheteria que criam o hábito na população de assistir aos filmes brasileiros. A posição dos cineastas no sentido de serem mantidos esses créditos é legítima. Temos que atuar em conjunto com as estatais para que elas contribuam não apenas para a produção de filmes de baixo e médio orçamento, mas também para os de orçamento elevado. São esses filmes que vão enfrentar, em termos de público, as produções estrangeiras. Temos que garantir recursos para os blockbusters nacionais, pois eles é que vão levar o público – como Cacá Diegues tem ressaltado, e concordamos com ele – ao cinema. Filmes como Carandiru, Olga e as produções do Renato Aragão e da Xuxa são fundamentais para a criação do hábito saudável de ver nossos filmes. Ao mesmo tempo, o financiamento às pequenas produções, retratando a diversidade cultural do País, é imprescindível.

ISTOÉ – O cinema e o audiovisual brasileiros são viáveis?
Juca Ferreira

Sem nenhuma dúvida. Tenho recebido distribuidoras estrangeiras interessadas em produzir aqui filmes e vídeos sobre temas brasileiros, como cultura, meio ambiente e esporte. Eles querem saber se há incentivos do governo a este tipo de produção. Então pergunto: por que os nossos cineastas, as produtoras de vídeo, as próprias tevês não fazem este material para ser exportado?

ISTOÉ – O governo garante, então, que não tem pretensões de controlar a produção cultural brasileira?
Juca Ferreira

Quando se vai regulamentar uma atividade econômica, faz parte do
jogo todo mundo defender seu lado. No Brasil, a grande indústria não é o
cinema, e sim a tevê. Nós não vamos mudar nada do que a televisão brasileira já conseguiu fazer. É claro que há dificuldades com o modelo, pois as tevês estão com dívidas enormes. A verdade é que, em todo o mundo, existem exigências de diversificação da produção exibida por uma rede de tevê. Elas estão limitadas a produzir apenas parte dos programas que exibem. Nos Estados Unidos, quem faz a maior parte das séries de tevê são produtores independentes que depois vendem os programas para as grandes redes. Não é uma questão técnica e sim estratégia das democracias. No Brasil, nunca houve uma regra que estimulasse essa diversificação. Nós admitimos que é preciso uma certa centralização das atividades de produção das tevês em função das instalações e da capacidade técnica existentes. Você não dispõe no País de algo que se assemelhe à base de produção de novelas no Rio de Janeiro. Não somos ingênuos. Mas é importante ampliar, estimular a produção regional de tevê em todo o País.