Plano aberto: no set de filmagem, antes de começar o trabalho, o padre Marcelo Rossi reúne os presentes para rezar. Close no diretor Moacyr Góes, um ateu convicto que não sabe nem o Pai-Nosso. “Eu fico quieto no meu canto em sinal de respeito”, diz Góes. As sequências seguintes têm efeitos muito especiais nos bastidores. “A questão do padre é religiosa; quer saber apenas como isso vai ser colocado no filme. Ele não tem vaidades ou pretensão de se tornar ator. Apenas reza, filma e vai embora”, conta. O recém-estreado Irmãos de fé é o segundo trabalho de Góes com Padre Marcelo. O primeiro, Maria, a mãe do filho de Deus, lançado no ano passado, somou 2,4 milhões de espectadores. Segundo o diretor, trata-se de um filão que descobre um novo público. No Nordeste, ele conta, um homem chegou numa bilheteria e pediu: “Quero dois ingressos, um para homem e outro para mulher.” Ou seja, ele nunca tinha ido ao cinema. Na sua inocência, acreditava que os preços seguiam a lógica dos bailes de forró.

A expectativa é que Irmãos, com Thiago Lacerda no elenco, ultrapasse a bilheteria de Maria. “Ele está mais bem realizado, tem mais ação e tema mais amplo, que é o começo da Igreja”, acredita Góes, cineasta acostumado a grandes bilheterias e, justamente por isso, alvo de críticas. Além dos dois longas-metragens de Padre Marcelo, ele dirigiu no ano passado Xuxa abracadabra e Um show de verão, com a apresentadora Angélica. Encontra-se novamente no comando de Xuxa e o tesouro da cidade perdida, previsto para dezembro. Seu único trabalho que não estourou em cinema é Dom, protagonizado por Marcos Palmeira e Maria Fernanda Cândido. “Sou muito patrulhado por ter me ligado ao Diller (Trindade), que é produtor de filmes comerciais. O Brasil é um país infestado de preconceito”, diz.

Góes reconhece que a cobrança é maior por ele ser oriundo do teatro de vanguarda, dito alternativo, época em que era o enfant gâté da mídia. “Já fui muito elogiado e também muito criticado, como quando convidei Letícia Spiller, na época uma ex-paquita, para uma peça. Tenho amigos críticos e sei que existem muitas motivações para além da obra.” Góes não perde tempo com divagações abstratas e vai direto ao centro da questão. “Não sei como vivem as pessoas que me criticam, mas eu vivo do que consigo ganhar trabalhando. Tenho dois filhos e ainda não possuo apartamento próprio. Não faço cinema para ganhar dinheiro, mas é muito bom ganhar dinheiro com ele.”

Segundo o diretor, falta entendimento e aceitação de que cultura é mercado, não diletantismo. “É um papo muito atrasado que remete ao século XIX, quando artistas morriam miseráveis, escrevendo romances com sangue.” Com passagem de quatro anos pela Rede Globo, onde dirigiu novelas como Suave veneno, Malhação e Laços de família, Góes acha “uma bobagem” a discussão sobre a suposta “linguagem televisiva” do filme Olga, de Jayme Monjardim. “Há filmes bons ou ruins e não é o close que determina isso. O que se tem de examinar é se a narrativa é boa, se a história é mal contada, se o filme é chato ou não.” Linguagem cinematográfica, para ele, é algo obtuso e em fase de composição – ou decomposição.

Das três atividades – cinema, teatro e tevê –, a que menos o encanta é a última. Para as outras duas ele já tem projetos engatilhados. No cinema, quer montar As pelejas de Ojuara, de Nei Leandro de Castro. “Li o livro e achei engraçadíssimo. Fiquei interessado em filmar, mas soube que os direitos eram do Luiz Carlos Barreto. Estamos conversando.” No início do ano que vem pretende estrear a peça Ivanov, de Anton Tchecov. Antes de se aprofundar no texto russo, porém, ele se dedica ao entretenimento capitaneado pela rainha dos baixinhos. “Para quem gosta de estigmatizar, Xuxa é um prato cheio”, diz. A loura que ele conhece nos sets é descrita como “extremamente profissional” e sem estrelismos. “Nunca ficamos esperando a Xuxa chegar. Quando ela quer sugerir algo, pergunta: ‘Posso falar uma coisa?’ Se há divergências, a opção final é minha.” O filme dessa vez foca a ecologia e a biodiversidade, temas atuais que, certamente, ajudarão a bilheteria a prosperar. Preocupação que, segundo o diretor, passa longe de Xuxa. “Jamais conversamos sobre como fazer para o filme ter mais público. Ela quer qualidade e pluralidade, que sejam representadas religiões diferentes, minorias, etc.”, defende.

Nascido no Rio Grande do Norte e morando no Rio de Janeiro desde os quatro anos, Góes não é potiguar, e muito menos é carioca. Parece mais um mineiro com sua conversa mansa, mas firme, tom de voz suave e parcimônia com as divergências. Quando não está trabalhando, passa a maior parte do tempo no escritório – no segundo andar da cobertura alugada no Jardim Botânico, zona sul do Rio –, onde fotos de Xuxa, a Bíblia e livros de Kafka convivem na maior paz. Também estão lá os principais prêmios de teatro do Brasil, a cutucar a saudade. “Não tenho saudosismo, mas sei que foram os anos mais felizes de minha vida. Mesmo assim, fiz 20 anos de teatro e não consegui juntar dinheiro”, diz ele, que já se debruçou sobre textos de Tennessee Williams, Molière e Nelson Rodrigues, e dirigiu estrelas como Marília Pêra, Ítalo Rossi e Vera Fischer.

A biografia de glórias e pedradas não o preocupa. Moacyr Góes acha que a revisão histórica é a que fica. Cita Zé Trindade, Mazzaropi e a própria chanchada como exemplos de preconceito de época. “
Foram todos massacrados. Hoje são cult.” Os filmes de padre Marcelo Rossi poderão, um dia, estar nessa categoria? O diretor não se interessa pela questão e prefere iluminar outras cenas. “Presenciei uma missa para 40 mil pessoas no interior de São Paulo, comandada por Padre Marcelo. Isso é emocionante. Na reza do Terço Bizantino, ele incentivou as pessoas a levantar os braços com pedidos de graças. Sabe o que a maioria tinha nas mãos? A carteira de trabalho! Temos de lidar com isso com muito respeito.” Não por acaso o diretor hoje se questiona: “Não sei se sou o mais ateu dos cristãos ou o mais cristão dos ateus.”