Como um caleidoscópio, Getúlio Vargas (1883-1954) é um homem capaz de surpreender a cada movimento. No panorama político, suas facetas giram do ditador indiferente às torturas nos cárceres do Estado Novo ao líder sensível aos carentes, que conduziu o Brasil rural aos tempos de modernidade e industriali-zação. No campo pessoal, era monossilábico. Enigmático até para aqueles com os quais conviveu por décadas, Getúlio jamais deu margem a intimidades. Por outro lado, colecionava piadas a seu respeito. Para completar, conforme atestam os diários que escreveu entre 1930 e 1942, sofria como um adolescente os sobressaltos do amor. Após submergir com destemor neste turbilhão de facetas e nuances, o jornalista e escritor gaúcho Juremir Machado da Silva acaba de lançar o romance Getúlio (Editora Record, R$ 44,90, 430 págs.), única ficção histórica entre as publicações editadas no cinquentenário da morte do presidente, que não tem uma biografia definitiva.

Na obra, personalidades que marcaram a chamada Era Vargas convivem com personagens criados pelo autor, como o biógrafo Térsio Ramos, inspirado nos jornalistas gaúchos que nos anos 30 acompanharam Getúlio em sua mudança para o Rio de Janeiro e, em especial, no historiador Décio Freitas. Militante comunista, Freitas lutou contra o Estado Novo e teve de se exilar durante os governos militares. No final da vida, se converteu ao getulismo. “Ele era apaixonado pelo projeto de modernização contingenciada do Brasil”, lembra Juremir, referindo-se ao historiador, morto em março, aos 82 anos.

Embora mais contido na relação com seu protagonista, o autor procura dar, através de personagens, sua perspectiva de episódios emblemáticos. Num deles, lembra que Getúlio deportou a judia alemã Olga Benário, mulher do líder comunista Luiz Carlos Prestes, em 1936. À época, os nazistas ainda não haviam montado a trágica engrenagem que culminou no Holocausto. Olga, porém, estava casada de fato com um brasileiro e foi deportada grávida, o que é imperdoável. De qualquer forma, partindo do romance como escolha estética, Juremir mescla ficção com verdades históricas, amealhadas em 73 entrevistas, além de incontáveis leituras e pesquisas.

Em linguagem fluida, o autor coloca os amores do líder das massas em seu devido lugar, ou seja, em um lugar de destaque. Em seus diários, o próprio Getúlio revela a importância da bem-amada, uma figura feminina marcante em sua vida. Ele jamais cita nomes, mas mesmo em meio a intensas crises políticas, a bem-amada aparece em suas anotações, como no dia seguinte ao ataque integralista que transformou o Palácio da Guanabara em campo de tiroteio. “Aí despachei com os ministros da Marinha e da Guerra, recebi os oficiais promovidos e saí depois – fui ver a bem-amada”, registra Getúlio em 12 de maio de 1938. “As emoções sofridas e recalcadas precisavam de uma descarga emocional.” Entre as mulheres que se proclamam a bem-amada, guardada em segredo até o final por Juremir, está a antiga vedete Virgínia Lane, retratada com esmero desde os 15 anos, quando conheceu Getúlio, nos campos de São Borja (RS).