Parte do Terceiro Setor, formada por entidades sem fins lucrativos que defendem causas de interesse público, está se organizando para defender sua imagem. Segundo lideranças da área, há uma ação deliberada de alguns órgãos de imprensa e de certos parlamentares para denegrir essas instituições. Na Câmara Federal, há quatro projetos em tramitação sobre organizações não-governamentais (ONGs). Um outro, já aprovado no Senado, tem prioridade sobre eles. Todos estão sob a relatoria da deputada federal Ann Pontes (PMDB-PA). Dos cinco, três prevêem a criação de um cadastro nacional de ONGs, como forma de fiscalizar e controlar essas entidades. O governo também formou um grupo interministerial para discutir o assunto e deve formular sua proposta. A motivação: os recursos públicos repassados a organizações civis. “Há um esforço para encontrar improbidades nas relações entre o Estado e essas instituições, como se fosse privilégio do setor. Trabalhei por seis anos com duas mil entidades. Tive problemas, resolvidos, com apenas quatro. Isso é que é relevante”, afirma Ruth Cardoso, que comandou o Comunidade Solidária no governo do marido, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Segundo a ex-primeira-dama, que hoje coordena a ONG Comunitas, há grande desconhecimento sobre o Terceiro Setor. De fato, há dificuldade de compreensão porque o setor abriga as mais diferentes formas de associação da sociedade civil. Nesta classificação está toda organização que não é estatal nem comercial. Ou seja, todas as associações sem fins lucrativos: de sindicatos e pequenos clubes a fundações, passando por entidades religiosas e fundos de pensão. E não há números objetivos sobre a grandeza do setor.

Os legisladores, por mais dissonante que possa parecer, demonstram em seus projetos de lei desconhecimento da matéria e desprezo pelas várias formas de cadastros já existentes, como os da Receita Federal e o do Conselho Nacional de Assistência Social. “Temos instrumentos para que a relação com o governo seja clara. A lei das Oscips (organização da sociedade civil de interesse público), por exemplo, cria o termo de parceria e a prestação de contas por resultados. Não adianta juntar notas fiscais. É preciso ver a qualidade do serviço prestado. Se há mau uso de recursos, a responsabilidade é tanto das entidades quanto de quem as contrata”, diz Ruth Cardoso. Segundo Augusto de Franco, diretor-executivo do Comunitas, o projeto do Senado apresenta equívocos graves. “Entre outros pontos, viola a liberdade coletiva dos cidadãos quando diz que é livre a organização da sociedade civil para fins de interesse público, excluindo o direito de associação para fins particulares. Também estabelece interferência estatal indevida em assuntos privados quando determina que todas as entidades sem fins lucrativos devem ser fiscalizadas pelo Estado, até as que não recebem recursos públicos”, aponta ele.

Outra incoerência apontada por algumas lideranças é a criação do cadastro nacional de ONGs, pois apenas parte das entidades se intitula assim. O termo, utilizado nos cinco projetos, não tem definição jurídica. Surgiu há mais de 40 anos para designar uma entidade que, apesar de cuidar de causas públicas, não era do governo. Sob a denominação “entidades de interesse público” existem as de utilidade pública ou filantrópicas, as Oscips e milhares de outras entidades sem titulação oficial. Explica-se: os dois títulos são classificações solicitadas voluntariamente pela entidade. A relatora dos projetos, deputada Ann Pontes, promete uma revisão geral antes de dar seu parecer. “É uma excelente oportunidade para tornar preciso este setor tão diverso e sistematizar os dados já disponíveis. O substitutivo deverá contemplar todas as partes”, garante Ann.

Mas até a Associação Brasileira de Oganizações Não-Governamentais (Abong), que em audiência com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em setembro do ano passado pediu uma legislação apropriada a essas entidades, reclama do rumo que as coisas tomaram. “O governo, para agilizar suas ações ou fazê-las a custo reduzido, tem feito parcerias com o Terceiro Setor. Concordo que as ONGs não devem ser usadas para terceirizar serviços sem controle da sociedade. É preciso regular estas relações, mas não estabelecer controle do Estado sobre organizações civis”, explica Jorge Eduardo Durão, presidente da Abong. Ele cita uma declaração de José Genoino, presidente do PT, para interpretar que há ânimo negativo e confusão de conceitos no meio político desde a CPI das ONGs, encerrada em dezembro de 2002 e que apurou denúncias contra ONGs da região amazônica. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, de 30 de agosto, Genoino afirmou: “Estas instituições recebem dinheiro público para criticar o Estado. Deixam de ser não-governamentais para se transformar em neogovernamentais. Isto tem que mudar.” Durão avalia: “Se um homem democrático confunde público (de interesse geral) com governamental e não admite que nós, organizações da sociedade civil, temos o direito de criticar o governo, mesmo recebendo verba pública, o que pensam então os outros?” Genoino reforça que é preciso separar o joio do trigo. “Há ONGs e ONGs. Ninguém está acima da crítica. Nem eu, nem o PT, nem o governo, nem as ONGs. Temos que debater para aperfeiçoar”, diz.