José Silveira Neto, o Zeca, é um homem do mar. Desde pequeno, aprendeu a ganhar a vida nas águas geladas do sul à caça de cardumes do peixe-sapo, espécie cujo quilo chega a US$ 30 na Europa. E fez dinheiro. Sua empresa, a catarinense Pesqueira Oceânica, virou a maior exportadora brasileira, com US$ 6 milhões anuais. Para catapultar suas vendas e desvendar a tecnologia dos líderes mundiais, Zeca firmou parceria com um dos principais estaleiros espanhóis, que despachou para cá seu maior barco.

A primeira pescaria mostrou que o mar não estava para peixe. Doze horas após deixar o porto de Itajaí, em Santa Catarina, onde acabava de aportar, Zeca recebeu a notícia de que os espanhóis atracavam no porto de Montevidéu, no Uruguai. Ali despejaram 80 toneladas do pescado, avaliadas em US$ 300 mil. A intenção era mandar a carga para a Espanha, alegando que a captura ocorrera em águas internacionais. No lugar do registro brasileiro, pintado na popa, havia uma licença supostamente concedida pelas ilhas Falkland, antigas Malvinas. No mastro, tremulava a bandeira do Reino Unido. “Era um autêntico barco pirata”, conta Zeca.

Depois de muita peleja à porta de autoridades brasileiras e uruguaias, a carga foi apreendida. Só que os espanhóis deram um olé na Justiça e conseguiram aval para zarpar. Zeca não se deu por vencido. Moveu uma ação no Brasil, exigindo a prisão do barco na Espanha e uma indenização de US$ 400 mil. Embolsou um quarto desse montante e ainda espera a diferença. Na ponta do lápis, seu prejuízo passou dos US$ 3 milhões desde o final de 2000, quando começou o imbróglio.

Essa seria mais uma história de pescador, não fosse o fato de ser pura realidade. No início de agosto, a Marinha interceptou dois barcos estrangeiros em águas nacionais. Um deles, a embarcação inglesa Juno, passou 15 dias sem dar sinal de sua localização aos satélites de monitoramento. Suspeita-se que tenha desviado parte do atum para o Caribe, ou transferido a carga para outro pesqueiro. Como nada ficou provado, o barco só tomou uma multa.

Espionagem – A situação já foi pior. As ofensivas estrangeiras em nossas
águas reduziram os estoques dos peixes mais consumidos, como a sardinha, a pescada, a lagosta, o camarão e o caranguejo. Hoje o governo permite a captura de 17 mil toneladas de sardinha por ano, dez vezes menos do que na década de 1970. A pesca predatória causou prejuízo de US$ 60 milhões à indústria nacional, apenas entre 2000 e 2002.

Outro setor sensível é o da pesquisa científica. Há um mês, a Marinha  interceptou o navio americano Ocean Surveyor, contratado pela Petrobras
para prospectar petróleo e gás em águas sergipanas. Próximo de Belém, no Pará, o barco parou sem explicações. “Deveria avisar se estivesse em
apuros, mas ficou quieto como se estivesse pesquisando sem autorização”,  diz o comandante da Marinha Ilques Barbosa Júnior. Como ele, dezenas de embarcações se espalham pela costa brasileira fazendo uma radiografia das nossas riquezas naturais e reservas minerais.

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Contrabando – Não por acaso, o Gabinete de Segurança Institucional, órgão da Presidência da República, firmou em maio deste ano uma parceria com o Centro de Monitoramento por Satélite da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) de Campinas, no interior de São Paulo. A instituição é a responsável pelo sistema nacional de monitoramento de fronteiras. Ali, os especialistas estudam sinais de ocupação nas fronteiras, queimadas, nível de poluição de rios e contaminação das águas. Há quatro meses, com a ajuda de um satélite que registra qualquer objeto maior que 20 centímetros sobre a Terra, descobriu-se uma pista clandestina na calha do rio Uraité, na fronteira com a Venezuela. Com as coordenadas do local, o Exército detonou a pista.

A maior parte do contrabando de drogas, armas, madeira, animais e plantas de valor medicinal se concentra numa região do Amazonas chamada Cabeça do Cachorro, na fronteira entre Colômbia, Peru e Venezuela. Entre junho e julho deste ano, a operação Timbó II, das Forças Armadas, vasculhou cinco mil quilômetros de fronteiras, a maior parte em água doce, a principal via de acesso ao interior da floresta. Os militares identificaram uma centena de pistas de pouso, barcos com drogas, animais silvestres e amostras da vegetação.

Se não bastasse patrulhar mais de 30 mil quilômetros de vias fluviais e a faixa litorânea
que se estende por 370,4 quilômetros ao longo da costa, o Brasil pleiteia a ampliação de seus limites marítimos. Em maio deste ano, reivindicou à Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar os direitos à exploração das riquezas submersas numa extensão de água que se prolonga por quase 650 quilômetros em direção ao oceano. Esse acréscimo equivaleria à área somada dos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. É um patrimônio de valor estrondoso. Só em peixes, daria para retirar 1,7 milhão de toneladas por ano sem comprometer as espécies. É quase três vezes mais que o total pescado hoje. Levando em conta as novas reservas petrolíferas da bacia de Santos, que ainda não pertencem ao País, as jazidas conhecidas de petróleo passariam dos 12 bilhões de barris, ou US$ 300 bilhões.

Sivam do mar – Há muito as bisbilhotices chamam a atenção das Forças Armadas. Tanto que, em 1998, um grupo de estudo encaminhou ao governo o projeto de uma rede integrada de radares e satélites que, a exemplo do Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), cobriria toda a costa brasileira. Orçado em US$ 2 bilhões, o sistema previa a construção de três centros de controle. Também incluía a compra de oito aviões americanos e jatos da Embraer para reforçar a frota de 28 fragatas de patrulha. Dado o alto custo, os militares prepararam uma versão quebra-galho do sistema de vigilância, de US$ 200 milhões. Nenhum desses sistemas vingou e a vigília das águas nacionais continua na base do improviso. Em média, uma fragata cobre 160 mil quilômetros quadrados, área equivalente ao Estado do Ceará. Muitas vezes faltam recursos até para encher o tanque dos navios, o que torna impraticável uma resposta imediata nos 8.500 quilômetros de litoral brasileiro.

O quartel-general do sistema nacional de monitoramento funciona no Centro de Operações da Marinha, no Rio de Janeiro. Ali é feito o acompanhamento de toda a movimentação de barcos em águas brasileiras. Num telão se projeta o trajeto das embarcações que, por lei, são obrigadas a sinalizar sua posição aos satélites e radares. Em parceria, atuam o Núcleo de Sensoreamento da Marinha, em Niterói, e duas universidades, uma em Santa Catarina e outra em Pernambuco.

Para evitar os ataques dos piratas modernos, as autoridades brasileiras precisam mais do que uma boa parafernália tecnológica. A Argentina e o Uruguai, por exemplo, não liberam a saída de estrangeiros do porto sem um fiscal do governo a bordo. Por aqui a legislação é parecida, mas os agentes são terceirizados, ganham pouco e, por um extra, aceitam fazer vista grossa. “O Brasil é um caso único no mundo porque faz divisa com dez países problemáticos”, diz o consultor de segurança Ricardo Chilelli, da RCI First, que costuma fazer levantamento nas divisas para avaliar o risco de cada nação.


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