Tudo parecia certo para que, em 31 de outubro próximo, o Mercosul e a União Européia (UE) assinassem um tratado criando a maior área de livre comércio do mundo. Afinal de contas, o comissário do Comércio europeu, o francês Pascal Lamy, tinha se empenhado a fundo nas negociações com o Mercosul, buscando fechar com chave de ouro sua gestão de seis anos na UE. Mas Lamy e seus parceiros no comando europeu se esqueceram de que político em final de mandato, sem chance de reeleição, termina sendo posto de lado pela máquina administrativa. O descompasso entre o ministro e seus subordinados passou a ser a hipótese mais provável para a estranha contra-proposta européia, encaminhada ao Itamaraty na tarde da quarta-feira 29 (quando já era noite em Bruxelas, na Bélgica, sede da UE). Entre os itens que contrariam diretamente as promessas de Lamy, de que o acordo teria de aumentar o comércio entre os blocos, está uma redução das cotas de exportação de carnes do Mercosul para a Europa a volumes menores do que hoje os sul-americanos vendem para lá. Mesmo a abertura dos setores de serviços financeiros, telefônicos, seguros, infra-estrutura e compras governamentais oferecida pelo Mercosul foi torpedeada pelos burocratas da UE. No documento, é pedido um nível de abertura incompatível com as leis dos quatro sócios do Sul.

A proposta do Mercosul que gerou a reação contrária européia, segundo o Itamaraty, atendia a inúmeros pedidos feitos em mais de um ano de negociações e era considerada “extremamente abrangente”, de acordo com os diplomatas que coordenaram o trabalho, junto com os demais ministérios do Brasil e os governos de Argentina, Uruguai e Paraguai. O Brasil, como coordenador das negociações, mandou a proposta para Bruxelas na sexta-feira 24, antes mesmo de receber documento semelhante dos europeus, exatamente para criar um fato e dar tempo ao pessoal de Lamy, em tese, melhorar suas ofertas para que o acordo fosse fechado na data prevista (31 de outubro). Os pontos principais eram uma facilitação do ingresso de empresas européias em setores como bancos e financeiras, telefonia, seguros, infra-estrutura ambiental (saneamento básico, abastecimento de água), navegação marítima e infra-estrutura portuária. O Mercosul também garantia que, em até dez anos, 90% dos produtos exportados da Europa para cá ficariam com tarifas iguais a zero. Somente o setor automobilístico demoraria 18 anos para zerar a tarifa. Mas, considerando que a maioria das montadoras sediadas no Brasil são européias, isso não causaria maiores traumas e daria um fôlego à recuperação das fábricas na Argentina.

Depois de analisar a proposta dos europeus, o Itamaraty divulgou uma nota oficial em que lista os avanços da proposta brasileira, mostrando que representavam uma verdadeira abertura do mercado nacional de serviço e garantiam uma redução das tarifas alfandegárias de maneira significativa, já no curto prazo. O Itamaraty criticou a proposta européia, considerada inferior à já apresentada em maio deste ano. Mas o chanceler Celso Amorim acredita que o acordo ainda sairá, a médio prazo: “Não é uma tragédia”, afirmou. Para o ministro, as negociações podem ser retomadas em ritmo rápido assim que os novos comissários europeus assumirem seus mandatos de seis anos no dia 1º de novembro. O novo comissário do Comércio é o inglês Peter Mendelsson, que era o braço-direito do primeiro-ministro britânico Tony Blair e teve que renunciar ao cargo depois que se tornou público seu namoro com um rapaz brasileiro. Mendelsson é considerado favorável ao acordo entre Mercosul e União Européia. Resta saber se os burocratas vão deixar.